A reforma da Previdência e seus impactos

Segurados especiais, professores e acumulações permitidas na CF

O conceito de segurado especial consta do art. 11, VII, da Lei 8.213/91, que sofreu profundo e minudente aperfeiçoamento com a Lei 11.718/2008, incorporando-se à lei diversos entendimentos jurisprudenciais. Basicamente, é o trabalhador rural, o garimpeiro ou pescador artesanal que trabalha individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que com auxílio de terceiros, para sua sobrevivência e de sua família. Enfim, é o camponês que não possua um empreendimento de grande porte.

Com o fim de buscar uma vida digna para os segurados especiais, mantendo-os no campo produzindo gêneros alimentícios consumidos pela população em geral e também para evitar o êxodo para os grandes centros urbanos (onde grassam pragas como desemprego e violência) desses cidadãos que sobreviviam do consumo direto ou de alguma pequena renda proveniente da agricultura familiar ou da pesca, o legislador ordinário estipulou a medida assistencial contida nos arts. 39 e 143 da Lei 8.213/91, que permitia a concessão de aposentadoria por idade de um salário-mínimo, com a redução da idade para 60/55 anos (H/M), sem qualquer exigência de contribuição.

Com a PEC 287/2016, passa a ser exigido dos segurados especiais o pagamento de suas contribuições, “com alíquota favorecida, incidente sobre o limite mínimo do salário de contribuição para o RGPS”, conforme alteração pretendida no art. 195, §8° da CF; bem como a idade de 65 anos e o tempo de efetiva contribuição de 25 anos, para a concessão de aposentadoria por idade, nos termos da pretendida alteração no art. 201, §7°, da CF, não havendo mais a concessão de benefícios “previdenciários” sem a respectiva contribuição.

Ora, e como se dará com o segurado especial que nunca efetuou um recolhimento sequer e não completou os requisitos para a concessão da aposentadoria por idade dos arts. 39 e 143 da Lei 8.213/91? A resposta está no art. 8° da PEC 287/2016. O segurado especial também terá que possuir a arbitrária idade de corte de 50/45 anos (H/M), e pagar, “literalmente” um pedágio de efetiva contribuição de 50% do tempo que faltaria para atingir o tempo de atividade rural exigido.

Com isso, por exemplo, a agricultora com 42 anos de idade na data de promulgação da futura emenda, e que iniciou suas atividades com sua família desde a tenra idade de 16 anos, e que, mesmo sem recolhimentos, poderia se aposentar aos 55 anos de idade, depois de 39 anos de trabalho ininterrupto em agricultura familiar, em uma lida diária que poucas pessoas de vida urbana conseguiriam suportar, terá que trabalhar até os 65 anos de idade, sem qualquer regra de transição. E mais, terá que comprovar 25 anos de efetivos recolhimentos, para obter a aposentadoria por idade.

Qual será o caminho para a sobrevivência dessa senhora, cuja expectativa legítima de se aposentar aos 55 anos (sem recolhimentos) foi gerada pelo legislador e já constava de seu patrimônio jurídico? Ou abandona a agricultura e vai para o meio urbano trabalhar em algum subemprego (o que aumentará o êxodo rural e afetará a produção de gêneros alimentícios); ou vai ter que aguardar chegar à idade de 70 anos, que passa a ser o patamar etário mínimo para a concessão do benefício assistencial do art. 203, V, da CF, segundo a proposta do Governo.

Uma senhora que trabalhava desde os 16 anos na roça e esperava se aposentar por idade aos 55 anos, teria que aguardar mais 15 anos (além dos 39 anos trabalhados) para obter qualquer amparo estatal, isto se sua saúde permitir chegar a esta idade. Some-se a isso o fato de que a idade para a concessão do benefício assistencial do art. 203 poderá aumentar e não será mais assegurada a percepção de um salário-mínimo (arts. 19 e 20 da PEC 287). Há tudo, menos segurança jurídica, isonomia e razoabilidade nesta medida.

Some-se a isso o fato de que o proponente olvidou-se, gravemente, de abordar como seria a contribuição do segurado especial que colhe sua produção rural ou sua pesca artesanal episodicamente e a utiliza apenas para seu próprio consumo ou o de sua família, sem qualquer comercialização, realizando eventualmente apenas algumas trocas por outros produtos com outros segurados especiais.

Na verdade, demonstra o Governo desconhecer a realidade das diversas famílias que sobrevivem do simples consumo de produções rurais intermitentes, sobre as quais não há qualquer possibilidade de se imaginar alguma tributação. Diferentemente, o Imposto sobre Grandes Fortunas, previsto no art. 153, VII, da CF, continua sem regulamentação.

É claro o impacto que esta novidade causará na economia de milhares de pequenos municípios do país, ao se exigir a contribuição dos segurados especiais – que, inicialmente, será calculada mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização de eventual produção (art. 9°, parágrafo único, da PEC).

Milhões de segurados especiais se enquadrarão em casos como o exemplificado acima e se verão afetados pela draconiana proposta. O êxodo rural se ampliará sensivelmente e a produção rural e a pesca artesanal serão afetadas. A tão buscada ampliação da arrecadação não ocorrerá e a PEC só permitirá mais pobreza, desamparo, exclusão e desigualdade social. É este o quadro fático buscado na Constituição para o relacionamento com esses cidadãos?

Melhor seria tratar dos benefícios aos segurados especiais como eles efetivamente são: nítidos benefícios de caráter assistencial (eis que a Previdência pressupõe contribuição, segundo o art. 1° da Lei 8.213/91).

Assim, a Reforma quanto a este tipo de segurado, além de ferir o Estado de Direito ao não prever regra de transição para segurados especiais com menos de 50/45 anos (H/M) é uma violência ao pacto constitucional e deveria se circunscrever somente à exclusão desses benefícios da conta da Previdência Social, e serem assumidos como despesa atinente à União Federal e seu pacto constitucional pela assistência devida a esta classe de pessoas. Nada disto impediria o aperfeiçoamento da arrecadação de contribuições devidas por trabalhadores e produtores rurais que não se enquadrassem no conceito legal de segurado especial.

Quanto aos professores, o art. 23, I, c, da PEC 287 revoga o art. 201, §8° da CF. Pelo regime em vigor, os professores que comprovem exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio, podem ter o tempo mínimo de contribuição exigido para aposentadoria reduzido em 5 anos. Assim, tal classe de profissionais pode se aposentar com 30/25 anos de contribuição (H/M).

Esta redução do tempo exigido se justifica, diante de um tratamento especial devido a estes importantes profissionais, cuja dedicação ao objeto de suas atividades supera em muito o conceito de jornada de trabalho. Tal prerrogativa não mais existirá, segundo quer o proponente. Assim, o professor terá que reunir os mesmos requisitos para a concessão da aposentadoria em geral, 65 anos de idade, para qualquer sexo, e 25 anos de contribuição. Aqui, mais uma vez, o Governo traz a arbitrária idade de corte de 50/45 anos (H/M) para se permitir alguma transição (art. 11 da PEC).

Assim, por exemplo, o professor que iniciou sua vida profissional aos 20 anos de idade, trabalhando em duas ou mais escolas, e que tenha 49 anos de idade na data da promulgação da futura Emenda, estaria aguardando apenas mais um ano para poder se aposentar. Como se dará sua aposentadoria, com a aprovação da PEC? Ele terá que trabalhar por mais 15 anos para poder se aposentar somente aos 65 anos de idade. Não haverá qualquer regra de transição para esse professor, por ter menos de 50 anos de idade. Raciocínio similar se dará à professora com 44 anos de idade e trabalhando desde os 20 anos. Terá que trabalhar por mais 20 anos, sem qualquer regra de transição.

Parece-nos claro que essa proposta de emenda constitucional, ao estabelecer a idade de corte de 50/45 anos (H/M) para se permitir alguma regra de transição, nesse art. 11, assim como nos arts. 2°, 7° e 8° da mesma PEC, pode ser qualquer coisa, menos razoável, e muito menos ainda, isonômica. Isto sem contar com a agressão à segurança jurídica, à proteção da confiança e ao Estado de Direito que é cometida com a revogação das regras de transição em vigor, determinada no art. 23 da PEC em debate.

Nota-se da pauta etária adotada pela Reforma, certo comodismo na pesquisa atuarial e no planejamento previdenciário, pois o correto seria respeitar as expectativas criadas pelo Estado, com o regime até então vigente, e aplicar-se as normas novas apenas para quem iniciasse o vínculo com o RGPS ou RPPS’s a partir da data da Emenda Constitucional, e para os trabalhadores e servidores públicos até então filiados, se previssem tabelas com percentuais de “pedágio” para complementação de tempo de contribuição, de modo proporcional e gradativo, e de acordo com o tempo de contribuição que já detivessem na data da Emenda. Desta forma, haveria proporcionalidade e razoabilidade na atividade legislativa atinente às normas de transição que se fazem necessárias em qualquer Reforma da Previdência, e seria reverenciado o valor social do trabalho.

Uma opção legislativa seria a criação de uma regra de transição, para qualquer caso trazido na Reforma, embasada em uma tabela progressiva de pedágio contributivo, que abandonasse definitivamente o arbitrário critério de corte da idade e se pautasse pelo tempo faltante para a aposentadoria da cidadã/cidadão, e fosse decrescendo conforme o tempo necessário para que a aposentadoria diminuísse, na data de promulgação da Emenda:

TEMPO FALTANTE (HOMEM): PEDÁGIO:
25 anos até 34 anos, 11 meses e 29 dias 50%
15 anos até 24 anos, 11 meses e 29 dias 40%
5 anos até 14 anos, 11 meses e 29 dias 30%
1 dia até 4 anos, 11 meses e 29 dias 20%

TEMPO FALTANTE (HOMEM): PEDÁGIO:
20 anos até 29 anos, 11 meses e 29 dias 50%
10 anos até 19 anos, 11 meses e 29 dias 40%
5 anos até 9 anos, 11 meses e 29 dias 30%
1 dia até 4 anos, 11 meses e 29 dias 20%

Ainda, anoto outra grave inconsistência da PEC 287/2016. Trata-se do §17, a ser inserido no art. 201 da CF. Pela disposição da proposta, a intenção é vedar a acumulação de mais de uma aposentadoria por conta do RGPS, de mais de uma pensão deixada por cônjuge ou companheiro, bem como de vedar a acumulação de pensão e aposentadoria por conta do RGPS, ou entre o RGPS e outros RPPS’s. Dispositivo idêntico é encontrado no texto do art. 40, §6°, da CF, cuja reforma é buscada pelo Governo, em relação aos RPPS’s.

A forma como esses dispositivos foi redigida demonstra que o Governo não se preocupa com o teor das leis ordinárias que regulamentam o tema. Se houvesse atentado um pouco para a Lei 8.213/91 teria percebido que a vedação à acumulação de mais de uma pensão deixada por cônjuge ou companheiro já consta do art. 124, VI, da Lei 8.213/91, eis que o legislador já sabia que não é possível imaginar a manutenção de dependência econômica para duas uniões matrimoniais distintas no tempo. A despeito da falta de preocupação do proponente com o direito já existente, o mais grave é o enriquecimento sem causa que a proposta traz.

Olvidou-se o Governo de que aquele que acumula aposentadoria e pensão tem seus benefícios advindos de fonte contributiva distinta, como no caso de um professor que trabalhe em duas escolas públicas. Ainda que se almeje reduzir o percentual de uma pensão, não se pode aceitar a mera exclusão da aposentadoria ou da pensão quando naturalmente acumuláveis e permitidas pela Constituição, salvo se o Governo devolvesse as contribuições atinentes ao benefício que será excluído. Mais grave: a acumulação de duas ou mais atividades, permitida no art. 37, XVI, da CF (não abordado nesta Reforma) para os casos de dois cargos de professor ou dois cargos de médico, por exemplo, não permitirá a acumulação de duas aposentadorias? O trabalhador recolhe suas contribuições pelos dois empregos e aufere apenas uma aposentadoria?

Com apenas um emprego, mas com o mesmo tempo trabalhado, seu colega de trabalho receberá o mesmo valor que ele, que trabalhava em dois cargos? É mesmo essa medida anti-isonômica e esse enriquecimento sem causa que o governo quer patrocinar com a Reforma da Previdência?

Enfim, observa-se que a PEC é inconstitucional ao não prever regras de transição proporcionais e isonômicas para todos os professores e segurados especiais, bem como ao agredir suas expectativas legítimas de aposentação conforme as regras em vigor, ao adotar a arbitrária idade de corte de 50/45 anos (H/M) para se permitir alguma regra de transição. O resultado será um desapreço deslegitimante de funções sociais primordiais como o agricultor e o professor, se as impactantes mudanças almejadas pela PEC 287/2016 forem aprovadas. Com o presente texto, intentamos trazer alguma alternativa gradativa e proporcional a esta anomia. Além disso, viveremos em uma sociedade que abandonará seus segurados especiais, outrora protegidos, quando diante de vulnerabilidades, criando abismos sociais e aumentando a pobreza, o êxodo rural, o desamparo e a desigualdade de renda. E, por fim, o Estado afetará a igualdade entre os profissionais e se apropriará de contribuições sociais arrecadadas de trabalhadores que podem acumular duas ou mais atividades, vedando a outrora permitida acumulação de aposentadorias (quando os cargos ou funções são acumuláveis e permitidas) e de aposentadoria com pensão (com contribuições provenientes de arrecadação distinta), sem qualquer justificativa adequada.

É mesmo isso que queremos?

O debate continua. Pretendo voltar a outros aspectos da Reforma em breve, esperando ter trazido alguma contribuição para a análise de seus efeitos, especialmente com a propositura de uma tabela com regra de transição mais razoável e proporcional para o cidadão, com a eventual aprovação da PEC.

*Victor Roberto Corrêa de Souza – Juiz Federal do 11º Juizado Especial Federal, especializado em matéria previdenciária. Doutorando do PPGSD/UFF

Fonte: jota.info

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