Usucapião administrativa: um novo impulso

Vitor Frederico Kümpel eBruno de Ávila Borgarelli

A lei 13.465/2017, uma das normativas mais relevantes para o Direito Imobiliário-Registral nos últimos anos, corrigiu questões problemáticas do regramento até então vigente sobre a usucapião extrajudicial. A principal modificação talvez seja a que diz respeito à presunção de discordância, uma opção feita pelo CPC/2015 e incluída no art. 216-A LRP, preceito regente do procedimento administrativo em questão. Basicamente, significava que, para a usucapião extrajudicial, a ausência de manifestação expressa do titular do imóvel usucapiendo, do titular de imóvel confrontante ou do titular de direito real sobre o bem importava sua discordância.

Na medida em que o Direito de Propriedade, já em sua dimensão constitucional, protege o titular tabular, parecia correta essa opção do legislador, tendo em vista que o possuidor usucapiente goza de uma proteção demarcada, com a via extrajudicial de sua realização a exigir anuência expressa do proprietário.

Mas é evidente que essa determinação prejudicava a aplicação do procedimento. As críticas são conhecidas e dispensam maior desenvolvimento. Se a ideia era facilitar a realização de usucapião e prosseguir a linha da desjudicialização, viu-se diante de um grande entrave. Veja-se: não se está aqui a dizer que a desjudicialização seja sempre boa e que a usucapião administrativa seja a oitava maravilha do mundo. Mas, se o legislador optou por incluir esse procedimento no sistema brasileiro, era preciso torná-lo operativo.

De todo modo, é também importante fazer o devido tributo ao CPC/15: a novidade da usucapião administrativa exigia cautela. É verdade que aquela presunção de discordância criou um bloqueio na aplicação do procedimento, mas um bloqueio facilmente solucionável por reforma legislativa, o que de fato ocorreu em 2017. Melhor ter um legislador que avança a passos cuidadosos em tão relevante procedimento do que a conhecida imprudência legislativa que castiga, em tantos casos, o Direito brasileiro (como ocorreu com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, a lei 13.146/2015, por exemplo).

Além disso, o CPC/2015 não se limitou a incluir um preceito (o art. 216-A) na Lei dos Registros Públicos, para inserir no ordenamento brasileiro a usucapião extrajudicial. Estabeleceu, na realidade, ferramentas para viabilizar essa modalidade, destacando-se aí a posição honrosa dada à figura da ata notarial. Este instrumento, do gênero das escrituras públicas em sentido amplo, reúne elementos dos mais prestigiosos da atividade tabelioa. Pois o NCPC incluiu no capítulo das provas uma seção dedicada à ata notarial, com um preceito, o art. 384:

“Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião.

Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial”.

Então, o que se conclui é que o NCPC trouxe sim o instrumental básico para a efetivação da usucapião extrajudicial. Se não houve sucesso imediato da figura, tal se deu pelo (justificado) receio dos agentes envolvidos e por certas exigências legislativas que travavam o procedimento, especialmente aquela presunção de discordância.

A solução veio, como se disse.

Com o advento da lei 13.465/2017, alteraram-se parágrafos e incisos do art. 216-A da LRP, destacando-se a nova redação dada ao § 2º:

“Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como concordância”.

Como se vê, passa o silêncio dos titulares de direitos reais sobre o imóvel ou dos imóveis confrontantes a ser tido como concordância, caso não manifestado expressamente o consentimento em 15 dias.

Destaca-se ainda a redação dada ao §13:

“Para efeito do § 2º deste artigo, caso não seja encontrado o notificando ou caso ele esteja em lugar incerto ou não sabido, tal fato será certificado pelo registrador, que deverá promover a sua notificação por edital mediante publicação, por duas vezes, em jornal local de grande circulação, pelo prazo de quinze dias cada um, interpretado o silêncio do notificando como concordância”.

Essa reforma, prenúncio de um impulso novo para a usucapião administrativa, exigiu ajustes para os serviços extrajudiciais, finalmente realizados pelo Provimento n. 65, de 14 de dezembro de 2017, da Corregedoria Nacional de Justiça, emitido com o objetivo expresso de “estabelecer diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial no âmbito dos serviços notariais e de registro de imóveis, nos termos do art. 216-A da LRP” (art. 1º).

O art. 10 do Provimento 65/2017 reforça a novidade na presunção de anuência:

“Art. 10. Se a planta mencionada no inciso II do caput do art. 4º deste provimento não estiver assinada pelos titulares dos direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes ou ocupantes a qualquer título e não for apresentado documento autônomo de anuência expressa, eles serão notificados pelo oficial de registro de imóveis ou por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos para que manifestem consentimento no prazo de quinze dias, considerando-se sua inércia como concordância”.

Ainda, e dentre outras relevantes colocações, o §10 desse mesmo art. 10 do Provimento dispensa a intimação dos confrontantes do imóvel usucapiendo caso a descrição tabular deste último seja precisa, e coincidente com a descrição da área requerida:

“§ 10. Se o imóvel usucapiendo for matriculado com descrição precisa e houver perfeita identidade entre a descrição tabular e a área objeto do requerimento da usucapião extrajudicial, fica dispensada a intimação dos confrontantes do imóvel, devendo o registro da aquisição originária ser realizado na matrícula existente”.

É dizer, além de se considerar como concordância a inércia – em 15 dias – dos titulares de direitos reais sobre o imóvel usucapiendo ou sobre os confinantes que forem devidamente notificados, o ato do CNJ ainda dispensa a própria intimação destes últimos (titulares dos confrontantes) no caso de coincidirem a descrição tabular do imóvel e aquela feita no requerimento de usucapião. Algo a se comentar em uma coluna específica, é claro – pois não parece questão trivial – mas que já denota o esforço de simplificação do procedimento, especialmente no que diz respeito à notificação de interessados.

Seja como for, e apesar de alguns riscos nessa normativa, a conclusão é de que houve – e tem havido – prudência na regulamentação da usucapião administrativa, tanto da parte do legislador, quanto do CNJ, quanto das normas das Corregedorias Estaduais.

Mas, é claro que uma novidade como essa ainda deixa inúmeros espaços duvidosos, cuja solução é tanto mais importante agora, diante de um provável aumento nos procedimentos de usucapião administrativa. Para se ter uma ideia, apenas na cidade de São Paulo correm quase 35 mil ações de usucapião! Algumas dessas demandas estão atualmente suspensas para que as partes se manifestem sobre a vontade de realizar o procedimento administrativo.

A usucapião administrativa está, sem dúvida, mais atual que nunca.

Este texto inaugura uma pequena série de colunas sobre algumas das questões espinhosas nesse tão relevante tema.

Sejam felizes. Até a próxima!

Vitor Frederico Kümpel

Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.

Fonte:  Migalhas

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