Só reforma tributária pode reduzir desigualdade, aponta estudo
Em 2016, o empresário Joesley Batista, pivô de um dos maiores escândalos de corrupção do país, pagou em impostos menos de 1% do que recebeu como administrador (R$ 2,2 milhões) e acionista (R$ 103 milhões) de suas empresas.
O dado consta da declaração de Imposto de Renda, vazada meses atrás, entregue por Batista à Procuradoria-Geral da República no âmbito do acordo de delação premiada. Mas, ao contrário de outras de suas atividades, o caso não envolve ilegalidade.
É que no sistema tributário do país, sob vários aspectos, quanto mais se ganha, menos se paga em impostos proporcionalmente, o que tende a perpetuar os altos índices de desigualdade do Brasil, onde seis pessoas detêm a mesma riqueza dos 100 milhões de brasileiros mais pobres.
“Sempre que se fala em reforma tributária, surge a discussão sobre quem vai pagar a conta. Acontece que 99% dos brasileiros é que pagam o pato, e precisamos dividir essa conta com o 1% restante, que paga proporcionalmente muito menos”, avalia Katia Maia, diretora-executiva da Oxfam Brasil, ONG britânica que lança, nesta segunda (25), o relatório “A Distância que Nos Une – Um Retrato das Desigualdades Brasileiras”.
O documento destrincha vários aspectos das inequidades do país, seja entre ricos e pobres, mulheres e homens ou negros e brancos. Aponta, por exemplo, que, se mantidas as tendências dos últimos 20 anos, mulheres só terão seus salários equiparados aos dos homens em 2047. E negros terão isonomia salarial em relação aos brancos apenas em 2089.
O relatório mostra ainda que os 5% que estão no topo da pirâmide econômica do Brasil concentram a mesma renda dos 95% restantes. E que um trabalhador que receba um salário mínimo mensal levará 19 anos para ganhar o mesmo que aqueles que integram o 0,1% mais rico do país recebem em apenas um mês.
Segundo o relatório, o combate a essas desigualdades passa necessariamente pela revisão da forma como o Estado arrecada e distribui recursos.
“O problema não são os ricos, mas o sistema tributário, que faz com que quem tem mais tenha cada vez mais”, afirma Maia. “Algum nível de desigualdade é inevitável, mas precisamos reduzir os extremos. Nossa tributação hoje não é excessiva, mas é injusta.”
LUCROS E DIVIDENDOS
De acordo com o economista Rodrigo Orair, um dos organizadores do livro “Tributação e Desigualdade” (ed. Letramento), a ser lançado em outubro próximo, nosso sistema pode ser classificado como “regressivo”, isto é, ele incide proporcionalmente mais sobre quem tem menos renda. “Isso amplifica a desigualdade”, diz.
Segundo dados compilados pela Oxfam, quem tem rendimento de 80 salários mínimos tem isenção de cerca de 66% em impostos enquanto para quem recebe de 3 a 20 salários mínimos essa isenção é de cerca de 17%. E na faixa mais baixa, entre 1 e 3 salários mínimos, ela é de apenas 9%.
O relatório chama esse aspecto de reversão e o credita tanto à limitação nas alíquotas do imposto de renda quanto à isenção de impostos sobre lucros e dividendos, a principal fonte de renda dos super-ricos. Foi esta combinação que permitiu a Joesley Batista pagar tão pouco imposto para tamanha renda total.
Atualmente, entre os países membros da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), apenas a Estônia isenta lucros e dividendos.
Até 1995, o Brasil aplicava uma alíquota de 15% sobre o lucro distribuído. Desde então, isentou esse dinheiro com base no argumento de que a empresa já paga impostos e que, portanto, tributar o lucro e os dividendos é abocanhar pela segunda vez fatia do mesmo dinheiro.
“A maior parte dos países que isentaram o lucro de impostos reverteram esse processo e hoje ele é tributado em duas etapas”, explica Sérgio Gobetti, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Países como o México e a Grécia retomaram essa prática no contexto de crises fiscais. Outros países, como os EUA, ampliaram essas alíquotas após a crise de 2008.
Para Gobetti, o Brasil ainda não reverteu esse quadro por dois motivos básicos. “Há muito desconhecimento sobre a matéria por aqui, e o poder público é mais capturado pelas elites, o que faz com que os interesses do poder econômico impeçam essa mudança”, diz. “Não se trata de questão ideológica, mas de cobrar daqueles que ganham mais, o que representa menor impacto negativo na economia.”
PROPRIEDADE
Segundo Orair, “o Brasil está na contramão da tendência mundial, que é diminuir a carga tributária sobre pessoas jurídicas e aumentar seu peso sobre pessoas físicas de maneira que os mais ricos paguem mais impostos.”
Por aqui, tributa-se menos renda e propriedade e mais bens e serviços.
De acordo com José Roberto Afonso, professor do Instituto de Direito Público e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia na FGV-Rio, isso “acaba penalizando aqueles que proporcionalmente mais consomem, ou seja, as famílias mais pobres. Pior: isso é feito de forma invisível e inevitável, com tributos embutidos nos preços”.
Com isso, os 10% mais pobres do país gastam 32% de sua renda em tributos, a maior parte deles indiretos (sobre bens e serviços), os 10% mais ricos gastam 21%.
No quesito propriedade, há outras distorções: enquanto o imposto sobre carros é alto em relação a outros países, aquele que incide sobre heranças e imóveis é mais baixo. Nesta chave, proprietários de carros pagam imposto (IPVA), mas ele não incide sobre a propriedade de helicópteros, jatos, iates e lanchas, privilegiando os mais ricos. “Esses outros meios de transporte não são interpretados como veículos automotores pelo nosso sistema. Para isso, bastaria reformar a lei, mas há muita resistência jurídica e política em relação a isso”, avalia Orair.
Soma-se a isso as módicas alíquotas de imposto sobre herança, que no Brasil chegam no máximo a 8%, quanto no Reino Unido podem atingir 40%, e o fato de um imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição, nunca ter sido implementado por falta de regulamentação.
“É preciso construir um novo sistema tributário em que haja preocupação com a equidade”, avalia Afonso, da FGV-Rio. “Essa agenda continua sendo adiada porque, resumidamente, faltam coragem política e competência técnica.”
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Fonte: Folha de São Paulo