Previdência: prendam os suspeitos de sempre
É mais fácil mentir do que reconhecer e discutir
José Robalinho Cavalcanti
Todos conhecem uma das cenas mais perfeitas de um dos filmes mais icônicos de todos os tempos. Victor Laszlo e Ilsa vão escapar de Casablanca. Rick mata o major nazista e o capitão Renault lhe salva a liberdade declarando a seus comandados que ele próprio acabara de atirar no major, e solta a genial frase que se tornou símbolo do desinteresse de busca da verdade e da arte de jogar a culpa em quem interessa: “prendam os suspeitos de sempre”.
Ao contrário dos anônimos suspeitos do território da França ocupada, todavia, os funcionários públicos na democracia brasileira não aceitam passivamente a mentira. A necessária reforma previdenciária não depende e não fracassa em razão dos espantalhos escolhidos pelo governo. Fracassa pela insegurança do debate provocada pelo conjunto caótico de manipulação desonesta de dados, meias verdades e mentiras deslavadas usadas pelo governo em propagandas milionárias.
O governo mente quando afirma que a reforma tem como principal alvo supostos “privilegiados” e insinua que seriam os funcionários públicos. Na verdade, os números revelam que a maciça maioria do que se retirará de aposentadorias e pensões sairá do regime geral da previdência social, vale dizer, dos aposentados e pensionistas do INSS. E isto é perfeitamente lógico, pois é o regime geral que nunca passou por um ajuste sério, ao contrário do regime dos servidores, que já sofreu duas reformas em 15 anos. Mas é mais fácil mentir do que reconhecer e discutir.
O governo mente quando diz que a reforma não atinge os mais necessitados. Muito ao inverso, tem sua pedra de toque e extrai mais dinheiro de medidas de efeito imediato e expressivo dano as aposentadorias do regime geral, como por exemplo reduzir em 40% a aposentadoria dos que chegarem aos requisitos com o tempo mínimo de contribuição (15 anos). E sabe o governo e sabe perfeitamente o mercado que são os trabalhadores mais pobres os que não conseguem comprovar tempo de contribuição. Esta medida empurrará milhões de pessoas para aposentadorias menores, a maioria para o salário mínimo. Esta crueldade pode, ou não, ser necessária, mas certamente não pode ser escondida do Congresso ou da opinião pública.
O governo mente quando diz que a sua reforma iguala o tratamento do regime dos servidores daquele do regime geral. A verdade é que esta equiparação já foi feita pela reforma constitucional de 2003 e completada por leis de 2013. Desde 2013 nenhum servidor contratado pela União tem aposentadoria diferente do teto do INSS, e se quer mais tem de buscar regimes complementares de previdência.
O governo mente e mistifica quando insiste em se referir a desequilíbrio tomando como exemplo o regime dos servidores públicos civis da União. O governo e o mercado sabem que, segundo seus próprios números, o crescimento do déficit – que é o dado realmente importante – se concentra no regime geral. O déficit do regime dos servidores é decrescente em relação ao PIB e a curva de queda só não é mais acentuada porque há de se bancar a transição, isto é, os novos servidores recolhem muito menos exatamente porque não terão a aposentadoria integral, e isto resulta em custo para o sistema.
O governo mente quando fala que a reforma trata a todos com isonomia. Optou por deixar completamente de fora do debate a aposentadoria dos militares – de longe a mais desequilibrada – , mas na hora da propaganda e discursos soma este déficit desequilibrado e crescente dos militares ao déficit muito menor em termos relativos, e já equacionado, dos servidores civis, para criar ilusão de urgência de atingir os “suspeitos de sempre”.
O governo mente quando diz que a reforma é palatável, porque haverá transição para todos. Para o regime geral – que hoje não tem idade mínima – propõe-se que a idade mínima de 65/62 anos chegará em 20 anos, mantidas as condições de aposentadoria, enquanto para os servidores públicos que já passaram pelo ajuste de 2003, já têm idade mínima, pagam contribuições muito maiores e por muito mais tempo, permanecem contribuindo para o sistema mesmo depois de aposentados e já estão em um regime de transição muito mais duro e exigente, inclusive em termos de tempo de contribuição, quer-se que a nova idade mínima seja fixada no dia seguinte à eventual promulgação. Este tratamento diferenciado e este desrespeito pela transição já em curso tornam inconstitucional esta medida, do que já foi alertado o governo. Contudo, a arrogância da equipe econômica e a escolha do espantalho não permitem que se ouça a razão. Às favas motivos econômicos – a economia é pouco significativa – e segurança jurídica: prendam os suspeitos de sempre.
Disse na Câmara dos Deputados em audiência pública que todos reconhecemos que deve haver mudança na idade mínima. E estamos desde sempre dispostos a negociar e as lideranças políticas também o estão. É o governo, contudo, que insiste na radicalização, pois não tem qualquer compromisso com a verdade e não pode abdicar do espantalho que escolheu, do culpado para escamotear as falhas clamorosas de seus números e propostas.
A escolha dos funcionários públicos como alvos nada tem de ocasional. Manipula-se preconceitos difusos para se criar um “inimigo externo” ao tempo em que se busca demonizar os servidores públicos estáveis e independentes estruturados pela Constituição de 1988. Ora, são estes funcionários estáveis pré-2003, principalmente das carreiras de estado, que formam a espinha dorsal das carreiras que investigam, fiscalizam, processam, incomodam as forças políticas que estão no poder. O objetivo final vai muito além da previdência, portanto, o que se busca, claramente, é manter o sistema político corrompido.
Por fim, é muito difícil de acreditar – merece mais de uma auditoria – a afirmação do governo de que os déficits da previdência continuarão a crescer no mesmo ritmo nos próximos anos. Na verdade, é banal e intuitivo que a despesa previdenciária é anticíclica e a receita cíclica. Então com o crescimento da economia o déficit cairá. Isto não altera eventuais desequilíbrios estruturais, e não teria importância se o debate tivesse sido travado em cima destes desequilíbrios. Mas não foi. Foram meses a fio com o governo e o mercado a repetir números de déficit na casa das centenas de bilhões, déficit este inflado de forma galopante pela recessão (o regime geral saiu de equilíbrio para mais de 100 bilhões em déficits em um par de anos, o que jamais poderia ser explicado por curvas etárias ou problemas estruturais). E agora, como explicar aos congressistas e à opinião pública que aqueles números estratosféricos que tanto se repetiu como mantra vão se reduzir?
O país tem o direito de concluir que esta é uma das razões do desespero visível do governo. O debate durante o período eleitoral vai se dar sob a revelação de mais algumas mentiras. O país e o Congresso não se deixarão enganar. Senhores deputados, o debate da previdência é importante demais para ser conduzido por mistificações e pelas piores formas de propaganda. Esqueçam os suspeitos de sempre. É no regime geral que está o problema, e tem de ser corrigido com serenidade, e não sob histeria e falta de critérios técnicos