O rombo que há nas contas públicas não provém da previdência social
Muito se propaga em diversos meios de comunicação, com suposto respaldo em opiniões de célebres economistas, que a previdência social, nos moldes atuais que permitem aposentadorias de cidadãs e cidadãos sem limite mínimo de idade ou com idade inferior a 65 anos não se sustenta.
Chegam ao extremo de chantagear o incauto contribuinte com o argumento de que, se não aceitar agora ter que trabalhar até pelo menos 65 anos de idade, ainda que tenha iniciado a labuta aos 15 ou menos e, portanto, contribuído ao INSS durante pelo menos 50 anos, estará de maneira egoísta condenando as futuras gerações, seus filhos e netos, a não terem aposentadoria ou previdência alguma futuramente.
Pura falácia. Léria de letrados tentando engodar cidadãos de boa fé que durante décadas entregaram o seu dízimo à previdência social confiando na promessa de que se aposentariam e gozariam o merecido ócio depois de 30 ou 35 anos de contribuição. Na hipótese mais crédula, seria pelo menos absoluto desconhecimento de causa de quem sustenta essa falseta. Por ainda confiar na boa fé do ser humano, preferimos ficar com esta última.
E para alcançar a conclusão de que é ardilosa ou no mínimo equivocada tal pregação apocalíptica acerca da falência iminente da previdência social a ser causada por aposentadorias ditas “precoces”, caso o cidadão não aceite tragar a seco a idade mínima de 65 anos para se aposentar, independente do tempo que contribuiu, não é necessária nenhuma engenharia interpretativa, tampouco pós-doutorado em renomadas universidades estrangeiras. Basta um singelo exercício de matemática financeira, acessível ao conhecimento de estudantes secundaristas ainda no limiar do seu aprendizado no ensino médio.
O leitor duvida? Pois bem, vamos demonstrar.
A previdência social, ou seja, o instituto que tem por finalidade pagar ao contribuinte a sua aposentadoria e lhe garantir alguma segurança financeira na melhor idade (de preferência enquanto estiver vivo), previsto na Constituição Federal de 1988 que emocionou o saudoso doutor Ulysses ao declará-la promulgada, tem caráter contributivo, de filiação obrigatória e é norteada por critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial (art. 201 da CF).
Para facilitar a compreensão, por caráter contributivo entenda-se a colaboração do segurado, entregando a um fundo (o INSS) uma parcela dos seus rendimentos mensais (em média 10%). Embora de filiação obrigatória, diga-se, todo trabalhador é obrigado a se filiar e contribuir, tal contribuição não se trata de um imposto, pois quanto a este a obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte (art. 16 do Código Tributário Nacional).
Dito de outra forma, os impostos em geral são cobrados pelo Estado sem que o ente público estabeleça uma finalidade exata para a sua destinação; pode ser utilizado, dentre outros fins, para obras públicas, custear serviços básicos e essenciais como a saúde, a educação e pagar juros da dívida pública, sendo esta última, é bom que se diga, a finalidade que mais exige recursos do erário.
Bem diferente é contribuição à previdência ou ao INSS, pois esta tem finalidade específica, a saber: a formação de um fundo para custear as aposentadorias dos contribuintes. Não poderia, portanto, ser desviada sem retorno para outros fins além de custear a seguridade social, pois esta é a estrita finalidade que lhe confere o art. 195 da Constituição Federal.
Para que se alcance esse objetivo de custear as aposentadorias é necessário que se mantenha o equilíbrio financeiro e atuarial, ou seja, o contribuinte deve amealhar uma quantia de dinheiro a formar um montante que, depois de certo tempo, seja suficiente a lhe permitir a retirada de parcelas mensais desse numerário que juntou, de preferência iguais ao valor da média dos seus salários durante a vida de labor, tudo isso sem precisar trabalhar ou contribuir mais.
Já percebe certamente o caro leitor que é preciso contribuir, pois, como bem ensina a sabedoria popular, é do couro que sai a correia.
Pelo regime atual, grosso modo, o trabalhador do sexo masculino contribui ao INSS durante 35 anos com 10% do seu salário mensal em média. O seu empregador reforça bem o caixa, recolhendo outros 20%, totalizando 30% do salário do trabalhador por mês.
Pois bem. Peçamos então agora ajuda não aos universitários, mas aos secundaristas, que já nos será suficiente.
Recolhendo 30% do salário por mês (0,30) ao fundo durante 35 anos (ou 420 meses), teria o afortunado trabalhador o equivalente aproximado a 2.653 vezes o valor do seu salário, se aplicadas tais contribuições mensais à taxa SELIC (atualmente 14% ao ano ou 1,0979% ao mês – oportuno lembrar que, a despeito de referida taxa já ter se aproximado dos 7% ao ano, outrora resvalou os 40% anuais).
Se alguém quiser conferir, basta elevar 1,010979 ao expoente 420. Do resultado subtrai-se 1 e divide-se por 0,010979. Esse último resultado multiplica-se por 0,30. O secundarista seguramente saberá executar essa operação, sem carecer de exibições de power point ou planilhas do Excel. Bastar-lhe-á (valha-nos a mesóclise) uma calculadora científica, mas nada impede que lance mão das primeiras ferramentas que, se bem e fielmente manejadas, serão de igual modo muito úteis.
Desejar o trabalhador que a sua suada contribuição mensal seja corrigida pela taxa SELIC não se considera nenhuma pretensão desmedida, pois é essa a taxa de juros que todos pagamos para custear a dívida pública em Pindorama.
Ora, se então o trabalhador terá amealhado o equivalente a 2.653 vezes o valor do seu salário ao cabo de 35 anos de contribuição, independentemente de contar nessa ocasião com 65, 60, 55, 50 anos de idade ou até menos, bastará manter esse montante, não mais nos títulos do tesouro que remuneram pela SELIC, pois nesse caso o trabalhador estaria ousando ficar milionário, mas na popular e vetusta caderneta de poupança, que remunerada a singelos juros de 0,5% (meio por cento) ao mês, descontada a inflação, proporcionar-lhe-ão (de novo a mesóclise) o rendimento mensal equivalente a mais de 13 vezes o seu salário médio.
Como o trabalhador, muito ao contrário do que propalam, não é nada egoísta e se preocupa muito com as futuras gerações, certamente ficará assaz jubiloso em retirar durante o seu merecido ócio somente o equivalente a um salário por mês, capitalizando a outra dúzia de salários de sobejo no seu montante previdenciário, de modo que, mesmo vivendo esse bem-aventurado mais de cem anos, a sua viúva ou seu viúvo e, bem assim, os seus herdeiros, obviamente se não os tiver igualmente às dúzias, poderão viver não 75 ou 80, mas centenas de anos, aliás, eternamente que esse fundo não se acabará.
Sendo ele modesto e não exagerando na prole, satisfazendo-se com 4 ou 5 herdeiros, esse fundo, ao revés, só faria aumentar se cada um dos seus sucessores fosse igualmente comedido e se contentasse em retirar o equivalente a um salário per capita. Logo, cada nova geração desse previdente trabalhador seria ainda mais rica que a anterior, não necessitando para isso sequer trabalhar.
É verdade que outras condições deveriam permanecer inalteradas para a fidelidade desse raciocínio (como diriam os renomados, mantida a condição ceteris paribus), ou seja, não se consideram as variações de inflação e da taxa de juros, dentre outras. Sem embargo, a se ter em conta a sobra de 12 salários do trabalhador por mês, dúvida não resta de que dificilmente condições imprevistas desfalcariam o seu fundo de previdência a ponto de inviabilizar a retirada de pelo menos um provento mensal.
Na hipótese da mulher trabalhadora, que contribui somente por 30 anos, o fundo que acumularia seria o equivalente a aproximados 1.365 salários, proporcionando-lhe o rendimento mensal de 6,82 salários.
Isso para dizer o mínimo, porquanto pela atual regra 85/95, trabalhadores do sexo masculino que iniciaram a vida laboral aos 15 anos de idade, o que não é raro, terão que contribuir ao seu regime de previdência durante pelo menos 40 anos.
Até mesmo os servidores públicos, juízes, promotores, professores, delegados e tantos outros demonizados pelos renomados por auferirem na aposentadoria proventos integrais, sem limitação ao teto, teriam acumulado um fundo ao fim de 35 anos de contribuição que lhes propiciaria a retirada mensal de quase 5 vezes o seu salário. Caso contribuíssem por 30 anos, a retirada seria de 2,5 salários mensais e se o fizessem durante 25 anos a retirada seria de 1,27 salários. Isso se deve ao fato de os servidores em geral, pelo menos os que estão há mais tempo no serviço público, contribuírem com 11% sobre seu salário integral, mas em contrapartida não há recolhimento do empregador, que no caso é o próprio Estado.
Dito de forma mais simples, quaisquer dos tais “marajás” usufruiriam tranqüilamente a merecida aposentadoria com seus proventos integrais e ainda conseguiriam capitalizar o seu próprio fundo para deixá-lo de herança às vindouras gerações, tudo isso sem demandar um tostão do erário.
Saliente-se, por oportuno, que a seria possível aos servidores públicos em geral a retirada do seu salário integral, sem nenhuma dedução, mas o que hoje ocorre é que auferem o valor dos vencimentos deduzido do valor da contribuição previdenciária que continuam a pagar, mesmo depois de jubilados. Logo, por esse sistema, o fundo que deveria garantir a aposentadoria do servidor público continua a receber aportes e se capitalizar, enquanto vivo for o segurado, de modo que só faria aumentar se utilizado fosse para a sua finalidade precípua, que é custear a aposentadoria.
É certo que para esse raciocínio ter validade, necessário seria que as contribuições recolhidas dos salários dos trabalhadores, servidores públicos ou da iniciativa privada, fossem utilizadas unicamente para formação do fundo de previdência, como exige o art. 195 da Carta Cidadã proclamada pelo doutor Ulysses, embora já muito modificada desde então, sem desvio para outras finalidades, mormente o pagamento de exorbitantes juros da dívida pública.
Pois é nesse detalhe que reside o grande engodo: utilizaram e ainda utilizam o dinheiro da previdência social para o pagamento de juros da dívida pública já há décadas e nunca devolvem para o fundo de origem, cuja finalidade específica constitucional, diga-se à exaustão, é financiar a seguridade social.
Aqui não discordamos da utilização desse enorme montante para o financiamento de saúde, educação, obras públicas, estradas, pontes, viadutos, usinas nucleares e tantas outras finalidades republicanas, pois certamente a manutenção desses recursos sem destinação ou utilização alguma proporcionaria rendimento nenhum, de modo que só a corrosão inflacionária os exauriria.
Não obstante, é no mínimo de se exigir que o poder público devolva e remunere tais recursos pela mesma taxa de juros que paga a investidores e rentistas, pois está igualmente tomando emprestado dos contribuintes da previdência social o numerário de que necessita para atingir os seus demais fins constitucionais, mormente o pagamento de juros da dívida pública, repita-se.
Não é à toa que bancos e diversas instituições financeiras anseiam pelo desmonte da previdência social, impelindo a população a aderir a planos de previdência privados, administrados por tais instituições. Com efeito, tantos recursos captados dos trabalhadores a custo ínfimo para serem aplicados, não somente ao retorno da taxa SELIC, mas a juros de 100, 200, 300% ou mais ao ano certamente se traduz em uma fonte inesgotável de lucro fácil, com o menor esforço, configurando perversa e absurda acumulação de riquezas nas mãos de pouquíssimos, sem o necessário e desejável retorno ao bem social.
Portanto, caro leitor, se lhe disseram novamente que você é um egoísta e não pensa nas futuras gerações por não se conformar com a aposentadoria somente aos 65 anos de idade, desde que tenha contribuído 30 ou 35 anos com a previdência social, não acredite e não aceite. É falácia. Logro de letrados. Cuidado. Não confie neles. Peça ajuda aos secundaristas.
Marcelo Bueno Pallone é Juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região.
Fonte: Justificando