O golpe na Previdência

 
Em 1883 dom Pedro II já se debatia com a crise previdenciária
ossa Constituição estabelece que a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais (art. 193). A palavra golpe, por sua vez, também tem o sentido de ação ardilosa, em que há tramas.
Em 1883 dom Pedro II já se debatia com a crise previdenciária. A falta de dinheiro já ameaçava quebrar o sistema de montepios. Nesse início de 2017, interessante Reportagem da Agência de notícias do Senado Federal revela fatos e dados curiosos daquela época em que o Imperador convocou um grupo de políticos para discutir a crise. Em discussão as impopulares propostas de elevar o valor das contribuições e, simultaneamente, reduzir os benefícios de aposentados e pensionistas.
A partir da Constituição de 1988 o direito à Previdência Social passou a integrar, juntamente com o direito à Saúde e à Assistência Social, o sistema da Seguridade Social. O financiamento desse sistema de proteção foi previsto no texto constitucional, com parcelas de participação de trabalhadores, empregadores e do Estado. No que diz respeito ao Estado, foram previstas fontes próprias para o custeio.
E de onde surge o “déficit”?
Estudos da Associação Nacional de Auditores Fiscais da Receita Federal – ANFIP esclarecem que, desde 1989, os governos só consideram no orçamento da Previdência as contribuições dos trabalhadores e dos empregadores sobre a folha de salário. A contribuição do Estado no custeio do sistema instituído pela Constituição passou a ser denominada de “déficit”.
Os recursos originados de fontes próprias para esse fim ganharam outros rumos. Um deles corresponde à maior despesa do Estado brasileiro: pagamento de juros e serviços da dívida, que em 2015 consumiu R$ 502 bilhões, ou 8,5% do PIB. Não por acaso, essas despesas foram excluídas do sacrifício imposto pelo “Novo Regime Fiscal”, instituído pela recente Emenda Constitucional nº 95/2016, que limita os gastos públicos por 20 anos. Bloqueou-se a capacidade de o Estado brasileiro custear serviços que atendem diretamente à população, sem que houvesse a possibilidade de discutir a principal despesa – juros -, que drena a maior parte do orçamento público, e segue sem limites.
Fazendo críticas à carga tributária, a FIESP, em 2016, patrocinou grande campanha publicitária contra a possível elevação de impostos. Com o slogan “Não vou pagar o pato”, o presidente da entidade fez questão de esclarecer que não defendia apenas o setor industrial. Estava propondo a discussão “de forma horizontal debatendo o imposto que está sobre as costas do povo brasileiro, da sociedade brasileira, das empresas, das famílias, que prejudicam tanto a competitividade”.
Interpretando a Constituição, o STF reiteradamente reconhece a natureza tributária das contribuições previdenciárias.
Portanto, tal como ocorria no Império, a discussão da atual proposta do governo que pretende dificultar o acesso aos benefícios da Previdência – e, em alguns casos, simplesmente impedir a concessão de benefícios – tem, no fundo, natureza política e tributária.
Quais são as prioridades para a aplicação dos recursos públicos? São compreensíveis as urgências e os atropelos na tramitação dos projetos quando a prioridade é o pagamento de juros no lugar do cumprimento do objetivo constitucional definido para determinadas receitas públicas. Essa é uma discussão difícil de ser encarada à luz do dia!
Além do “Novo Regime Fiscal”, a disponibilidade do orçamento já vinha sendo comprimida pela desvinculação de recursos constitucionais assegurados ao gasto social. No final de 2016 o Congresso Nacional aprovou a majoração de 20% para 30% da Desvinculação de Receitas da União – DRU.
A reforma da Previdência proposta no final de 2016, conforme afirma a ANFIP, deve ser compreendida no contexto do aprofundamento da política de austeridade econômica. A Previdência ocupa lugar de destaque no aperto das contas primárias determinado pelo “Novo Regime Fiscal”. A recente absorção do antigo Ministério da Previdência Social, como secretaria, pelo Ministério da Fazenda, é um claro sinal nesse sentido.
Assim, é certo que a discussão de fundo, ainda que encoberta pela fumaça da ciência atuarial, com as técnicas de análise de riscos e expectativas, diz respeito a decidir, em última análise, onde serão empregados, prioritariamente, os recursos do orçamento público. Realizar o objetivo prescrito no artigo 193 da constituição: assegurar o bem-estar e a justiça social; ou pagar juros?
Isso explica a aparente perturbação do secretário de Previdência Social do Ministério da Fazenda, Marcelo Caetano, ao ser indagado sobre a relação da DRU com o alegado déficit da Previdência, no programa Roda Viva, no dia 12 de dezembro de 2016. Limitou-se a dizer que a existência da DRU é uma “questão de opinião”.
A Agência Senado recuperou a informação de que desde 1836 a Previdência se vê às voltas com tentativas de golpes e fraudes. Naquela época, eram singelas investidas de parentes de nobres, como o marquês de Jacarepaguá.
Nas décadas iniciais do século XX não havia regime geral de aposentadorias.  Na nossa atual composição política, medida de largo alcance como a majoração da DRU, que representa um duro golpe em quem mais precisa da Previdência, é saudada no parlamento como um “um instrumento brilhante” que garantiria a “eficiência na execução orçamentária”. A miséria era um horizonte de vida provável para os trabalhadores em idade avançada.

*Leomar Daroncho – Procurador do Trabalho
Fonte: https://jota.info
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