Novos desafios das imunidades tributárias

Análise de casos interessantes levados à apreciação do STF

No final de 2017, fomos convidados a falar no “1º Seminário Nacional de Imunidade Tributária das Entidades Religiosas, de Educação, de Saúde e Assistência Social”, evento ocorrido em Brasília em 06/12/2017. Ali, a nós foi atribuída a missão de palestrar sobre alguns aspectos de destaque relativos à imunidade tributária no Supremo Tribunal Federal, oportunidade que nos levou a algumas reflexões que agora compartilhamos com nossos leitores.

Dentre as limitações constitucionais ao poder de tributar, as imunidades exsurgem como importante instrumento de proteção a valores essenciais ao Estado Democrático de Direito e à república Federativa do Brasil. Previstas no artigo 150, VI, da CRFB/88, trata-se de hipóteses em que se veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre algumas situações ali previstas, não havendo quanto a elas hipótese de incidência para tal espécie tributária.

A partir de uma noção de que “o poder de tributar envolve o poder de destruir” – célebre frase atribuída ao Justice Marshall e pronunciada durante o julgamento do Caso McCulloch vs. Maryland (1819) –, revela-se uma preocupação com os possíveis usos espúrios que se poderia fazer da tributação. Ao mesmo tempo em que, como instrumento de política fiscal, esse fenômeno pode servir a fins extrafiscais ensejadores de uma maior equidade social, seu lado nefasto também é abstratamente possível, tolhendo-se, a partir da instituição e cobrança de tributos, direitos fundamentais e liberdades individuais muito caros ao Estado Democrático.

Assim é que, ao se relacionar ao direito de liberdade religiosa, à autonomia dos partidos políticos e ao pluripartidarismo, à liberdade cultural e ao incentivo de produção cultural nacional, à isonomia entre os entes federados, à liberdade sindical, dentre outros; as hipóteses de imunidades tributária se constituem sob o telos de realização de direitos fundamentais e valores constitucionais relevantes. Entretanto, não se trata de proteção absoluta, devendo seus elementos serem averiguados no caso concreto, justamente em função da presença ou ausência das finalidades essenciais para as quais instituídas as imunidades. Nesse contexto de busca de sua teleologia constitucional é que se revela um interessante debate, aplicado em diversas situações concretas, relativo ao possível conflito existente entre a prevalência das finalidades constitucionais em função das quais existem as imunidades e a (im)possibilidade de sua limitação por categorias tributárias infraconstitucionais (tais como as de sujeito passivo e fato gerador).

No âmbito da imunidade tributária recíproca, por exemplo, a limitação constitucional coloca-se, em um primeiro momento, relativamente ao patrimônio, à renda e aos serviços dos entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios, nos termos do art. 150, VI, ‘a’, da CRFB/88), estendendo-se também a suas autarquias e fundações públicas, naquilo que, nesse último caso, esteja vinculado às finalidades essenciais dessas entidades ou àquelas delas decorrentes (art. 150, §2º, da CRFB/88). Não obstante, mesmo diante da previsão constitucional de que essa hipótese tributária não alcançaria a exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário (art. 150, §3º, da CRFB/88), a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende extensível a imunidade tributária recíproca também às empresas púbicas e mesmo algumas sociedades de economias mistas, desde que prestadoras de serviços públicos (veja-se, nesse sentido, os seguintes casos exemplificativos: ACO 765, RE 601.392 e RE 253.472). De outro lado, como limite à incidência de tal limitação, não seriam alcançadas as empresas estatais exploradoras de atividade econômica, sob pena de indevida vantagem competitiva (art. 173, §1º, da CRFB/88).

bre o ponto, evidenciando o possível conflito acima anunciado, dois casos interessantes foram levados à apreciação do STF em 2017, nos quais foram discutidas duas questões principais, relativas ao direito de propriedade e à incidência do IPTU: (i) saber se seria possível a incidência do imposto no caso de imóvel de propriedade da União, mas destinado a uso por particular no exercício de atividade puramente econômica; e, (ii) em caso de resposta positiva a essa primeira questão, se o Município poderia cobrar o IPTU do próprio concessionário ou arrendatário do direito de uso do bem imóvel, ainda que o mesmo continuasse sendo de propriedade da União. O primeiro dos casos (RE 594.015) referia-se a imóvel de propriedade da União que estava arrendado pela Companhia Docas de São Paulo – CODESP à Petrobrás, sociedade de economia mista federal exploradora de atividade econômica. No outro (RE 601.720), tratava-se de imóvel cedido mediante concessão de uso pela Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária – INFRAERO (empresa pública prestadora de serviços públicos) a empresas privadas, também exploradoras de atividade econômica (concessionárias de veículos automotivos).

Em ambos os julgamentos, apesar da existência de divergências na Corte, restou assentado o entendimento de que seria possível a incidência de IPTU nas duas situações1. Partiu a posição majoritária da ideia de que os imóveis em questão, apesar de formalmente públicos, seriam materialmente privados, já que destinados ao uso de empresas (estatais ou particulares) exploradoras de atividade econômica. Dessa forma, assegurar a impossibilidade de tributação nesses casos representaria contrapor a finalidade constitucional de existência da hipótese imunitária, representando a concessão de benefício não isonômico e vantagem competitiva artificial. Ainda que a Corte também tenha se valido do argumento de que o art. 34 do Código Tributário Nacional possibilita que seja contribuinte do imposto além do proprietário do imóvel, o titular de seu domínio útil ou o seu possuidor a qualquer título, o cerne da fundamentação centrou-se na premissa de que categorias formais tributárias infraconstitucionais não se prestariam a subverter a finalidade social constitucional que fundamenta e justifica a existência da imunidade tributária.

Entretanto, essa busca das finalidades públicas às quais servem as imunidades e seu telos constitucional subjacente não só não justifica qualquer interpretação que redunde em uma ampliação de seu alcance para além dos sentidos possíveis permitidos pela literalidade da Constituição, como não parece se tratar de uma tendência universalizável às demais hipóteses imunitárias apreciadas pela Corte.

Nesse sentido, diferentemente do que afirmado nos casos acima indicados, a esse critério interpretativo teleológico não se atribuiu o mesmo peso nos casos relativos à aplicabilidade da imunidade aos chamados “contribuintes de fato” no caso de tributos indiretos. Com efeito, também em 2017, o STF teve a oportunidade de se manifestar definitivamente acerca do tema no âmbito da tributação indireta (RE 608.872, de rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 23/02/17, DJ de 27/09/17).

Não que a temática seja nova na Corte, tendo em vista que a consideração da realidade econômica pela norma jurídica imunizante já ensejava discussão desde a década de 1960, pelo então Ministro Aliomar Baleeiro. O ilustre professor defendia, já nessa época, a necessidade de que se se considerasse a realidade econômica, mediante a identificação daquele que efetivamente suportou o encargo financeiro da tributação, superando-se a realidade jurídica pela econômica. Dessa forma, tanto em se tratando de imunidade recíproca, quanto de imunidade das entidades de educação, assistência social ou de partidos políticos, a desoneração constitucional só poderia beneficiar os que assumissem a posição de “contribuinte de fato”, não alcançando as situações em que figurassem como “contribuinte de direito”.

Nas páginas históricas da Corte, essa posição possibilitou, inclusive, que fosse protagonizada uma célebre polêmica com o Ministro Bilac Pinto, que, ao contrário, defendia um alcance mais restrito da imunidade, apatando-se a realidade jurídica da econômica. O memorável embate ocorreu por conta do julgamento dos Embargos de Divergência nº 68.215, de relatoria do Min. Raphael de Barros Monteiro, na sessão plenária de 09/09/1970, tendo prevalecido na ocasião a posição manifestada em voto divergente trazido pelo Ministro Thompson Flores, que afirmava não ser aplicável a imunidade recíproca relativa ao imposto sobre o consumo quando a entidade estatal adquirisse produtos na qualidade de “contribuinte de fato”, entendimento a que se filiava o Ministro Bilac Pinto e que obteve a aderência da maioria da Corte2. Entretanto, apesar de ter se chegado a cristalizar tal entendimento na Súmula nº 591/STF, não foi esse o fim da questão.

No fim da década de 1990, o tema voltou à apreciação do STF, apresentando nova oscilação, dessa vez a partir de outra ótica. Em alguns casos, passou-se a afirmar o entendimento de que seria possível a cobrança de ICMS (tributo indireto) nas saídas de mercadorias promovidas pela entidade imune, ou seja, quando a entidade imune figurasse na posição de “contribuinte de direito”. Essa posição, porém, contrapunha-se à Súmula nº 591, porque a cumulação de ambos os entendimentos redundaria na aniquilação da imunidade: se a entidade beneficiada não faz jus à imunidade quando é consumidora – e, portanto, “contribuinte de fato” em relação aos tributos indiretos que incidiram em operações anteriores – e também não faz jus à desoneração quando efetivamente pratica o fato gerador – atuando, assim, como “contribuinte de direito” dos tributos indiretos incidentes na operação –, não há, em verdade, hipótese de aplicação da imunidade no caso da tributação indireta.

Toda essa celeuma redundou, então, no julgamento dos Embargos de Divergência no RE 210.251, em fevereiro de 2003, quando o Plenário do STF retomou a lógica da Súmula nº 591, afirmando que a entidade beneficente faria jus à imunidade enquanto praticante do fato gerador e, portanto, “contribuinte de direito” do ICMS que incidira na operação. Vale esclarecer que o caso concreto tratava de uma entidade de assistência social que pleiteava o reconhecimento da imunidade prevista pelo art. 150, VI, “c”, da Constituição em relação ao ICMS que incidiria sobre a atividade de produção e comercialização de pães que produzia e cuja receita arrecadada auxiliava na realização de seus objetivos institucionais.

Dentro desse contexto, restava ao STF definir, dessa vez sob a sistemática da repercussão geral, se a imunidade se aplicaria ou não à entidade quando esta figurasse na posição de “contribuinte de fato” do tributo indireto, como reconhecido pelo Ministro Dias Toffoli no reconhecimento da repercussão geral no RE 608.8723. Na análise de seu mérito a Corte entendeu, por unanimidade, que a repercussão econômica do ônus tributário não deveria ser considerada para fins de interpretação da norma imunizante nos casos de tributos indiretos, pacificando a questão mediante a fixação da seguinte tese: “A imunidade tributária subjetiva aplica-se a seus beneficiários na posição de contribuinte de direito, mas não na de simples contribuinte de fato, sendo irrelevante para a verificação da existência do beneplácito constitucional a repercussão econômica do tributo envolvido”.

Observe-se que o caso paradigma tratava de insumos, medicamentos e serviços inerentes à atividade de uma entidade de assistência médica hospitalar, discutindo-se a interpretação da imunidade em relação ao ICMS que incidiria na operação de aquisição interna pela respectiva entidade. É que, caso a aquisição se desse no mercado externo, seria ela então verdadeira “contribuinte de direito” do ICMS-importação e, portanto, beneficiária da imunidade à luz do entendimento fixado no RE-EDv 210.251.

Embora o entendimento afirmado no julgamento do RE 608.872 possibilite menor oneração na aquisição de produtos necessários à consecução das atividades das entidades imunes no mercado externo – ocasião em que figuram como “contribuintes de direito” –, a posição oposta também não é isenta de consequências indesejáveis no plano concreto. Nesse ponto, a prevalecer a tese outrora defendida pelo Ministro Aliomar Baleeiro, é preciso atentar para o fato de que a imunidade prevista pela alínea “c”, do art. 150, VI, da Constituição é condicionada, de modo que a entidade só faz jus ao benefício se e enquanto preencher determinados requisitos. Assim, por exemplo, caso reconhecida a aplicação da imunidade quando a entidade é consumidora final de determinados produtos e serviços, se comprovado posteriormente que ela não preenchia os requisitos legais para fruição do benefício, de quem poderia ser cobrado o imposto não recolhido anteriormente? Da entidade, “contribuinte de fato” do imposto não recolhido, ou de quem lhe vendeu os referidos produtos?4

Dessa forma, a análise comparada e contrastante de casos julgados em momentos próximos pelo STF evidencia não apenas a dimensão dos desafios a serem enfrentados quanto à interpretação das imunidades constitucionais, como deixa clara a complexidade que essa atividade envolve no âmbito da incidência tributária, seja pela indeterminação conceitual própria dos vocábulos empregados pela Constituição, seja pelas finalidades extrafiscais ou teleológicas que informam a (não) tributação.

Por isso é que não parece ser possível definir-se a priori a prevalência de determinado critério ou método interpretativo na atuação da Corte. Especificamente em relação às imunidades constitucionais, a análise permite concluir que ora tem prevalecido uma interpretação que privilegia a teleologia da norma imunizante – no sentido de buscar a finalidade social da desoneração e de forma a ensejar ampliações demasiadas de seu alcance –; ora tem prevalecido uma interpretação mais contida, cujo resultado se limita a explorar a literalidade do texto normativo.

Indica-se, assim, a revelação do debate inicialmente apresentado: na interpretação das hipóteses de imunidades tributárias, devem prevalecer as finalidades constitucionais para as quais existem ou essas finalidades podem ser limitadas por categorias tributárias formais infraconstitucionais? Em todo caso, há que se rememorar que, como garantias fundamentais limitadoras do poder de tributar, as imunidades devem ter seus núcleos essenciais preservados, limitando-se a própria limitação de sua interpretação (Schranken-Schranken).

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1 No RE 594.015, fixou-se a seguinte tese de julgamento: “A imunidade recíproca, prevista no art. 150, VI, a, da Constituição não se estende a empresa privada arrendatária de imóvel público, quando seja ela exploradora de atividade econômica com fins lucrativos. Nessa hipótese é constitucional a cobrança do IPTU pelo Município”. No RE 601.720, por sua vez, restou a conclusão de que ““Incide o IPTU, considerado imóvel de pessoa jurídica de direito público cedido a pessoa jurídica de direito privado, devedora do tributo”.

2“A imunidade ou a isenção tributária do Comprador não se estende ao produtor, contribuinte do Imposto sobre Produtos Industrializados” (DJ de 05/01/77).

3 “Com efeito, a questão posta nestes autos envolve debate sobre a efetividade das normas de imunidade relativas às entidades de assistência social sem fins lucrativos quando adquirentes de bens no mercado interno, ou seja, na qualidade de contribuintes de fato (consumidor). Nesse contexto, observo que os RREE nºs 203.755/ES, DJ de 8/11/96, e 225.778/SP, DJ de 10/10/03, ambos de relatoria do Ministro Carlos Velloso, embora façam referência à aquisição de bens no mercado interno ou externo, não se amoldam ao caso concreto, visto que veiculam matéria relativa à imunidade do ICMS em operação de importação de bens destinados ao ativo fixo de entidade assistencial. Outro precedente paradigmático que tem sido adotado, mas que, também, não se aplica ao caso concreto, é o RE 210.251-EDv, Redator para acórdão o Ministro Gilmar Mendes. A controvérsia lá travada limita-se à cobrança de ICMS decorrente da comercialização de bens produzidos por entidades de assistência social. Fica evidente, assim, a necessidade de se enfrentar o tema de fundo. Entendo que a matéria transcende o interesse subjetivo das partes e possui grande densidade constitucional, na medida em que se discute, neste caso, o alcance da imunidade prevista no artigo 150, inciso VI, c, da Constituição Federal quando as destinatárias da norma adquirem bens no mercado interno.”

4 Sobre o ponto, merece destaque a consideração feita pelo Ministro Luís Roberto Barroso, por ocasião do julgamento do RE 608.872: “Embora eu ache que seja uma política pública saudável não tributar medicamentos e equipamentos hospitalares, eu acho que ela compete ao legislador, por meio de isenção, e não a nós, por meio de interpretação constitucional extensiva”.

Fonte: Jota, por:

Abhner Youssif Mota Arabi – Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Autor dos livros: “Terceirização: uma leitura constitucional e administrativa” (Editora Fórum, 2018); “Mandado de Segurança e Mandado de Injunção” (Editora Juspodivm, 2018); “A Tensão Institucional entre Judiciário e Legislativo: controle de constitucionalidade, diálogo e a legitimidade da atuação do Supremo Tribunal Federal” (Editora Prismas, 2015); coordenador da obra “Direito Financeiro e Jurisdição Constitucional” (Editora Juruá, 2016) e autor de diversos capítulos de livro e artigos jurídicos. Professor e palestrante

Raquel de Andrade Vieira Alves – Assessora de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ. Autora do livro “Federalismo Fiscal Brasileiro e as Contribuições” (Editora Lumen Juris, 2017) e coordenadora da obra “Direito Financeiro e Jurisdição Constitucional” (Editora Juruá, 2016)

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Fonte:  Dia a Dia Tributário

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