Mais uma vez, Ives Gandra Filho rifa direitos fundamentais alheios e a Justiça do Trabalho
*Valdete Souto Severo e Jorge Luiz Souto Maior
Recém derrotado na corrida para uma vaga no STF, não querendo sair da mídia e procurando demonstrar que ainda possui alguma relevância para a lógica golpista instalada no país, no mesmo dia em que seu algoz Alexandre de Moraes está sendo sabatinado no Senado, o Ministro Ives Gandra Martins Filho publicou um artigo defendendo as reformas trabalhista e previdenciária propostas pelo (des)governo.
Para sermos muito honestos, devemos confessar que lemos o artigo em questão com muita preguiça, pois já sabíamos, de antemão, o que seria dito pelo Ministro, afinal o seu discurso, envolto em “modernidade”, é o mesmo que vem expressando desde a década de 90, já reproduzido inúmeras vezes pelos veículos de grande circulação.
Trata-se do mesmo discurso que vem servindo, desde sempre, para justificar falsos enfrentamentos de crises econômicas, que, quando realmente existentes, são cíclicas e que acompanham a história do capital desde a sua gênese. É interessante verificar que a palavra crise está presente em todas as falas que tentam justificar o sacrifício alheio desde quando se tentava abolir a escravidão no Brasil.
Como resultado de inversão maliciosa ou irresponsável dos fatos e da própria funcionalidade real dos institutos, o Direito do Trabalho já foi inúmeras vezes acusado de culpado pelo desemprego e pelo insucesso econômico das empresas, quando, concretamente, são as normas trabalhistas que estruturam e permitem o funcionamento do capitalismo.
O discurso cansativo, monótono, pouco criativo e sem qualquer fundamento, segundo o qual os direitos trabalhistas, por meio de uma jurisprudência protetiva, ao avançarem demais provocaram o desemprego, não se sustenta sequer pela análise da própria jurisprudência afrontada pelo Ministro Ives em seu artigo, afinal, a jurisprudência trabalhista tem sido – com honrosas e não raras exceções – uma das principais vias pelas quais questões como o negociado sobre o legislado e a terceirização sem peias tem se tornado a realidade cotidiana de muitos trabalhadores. Basta pensarmos nas Súmulas 331 e 444 do TST.
É claro que o Ministro sabe, como sabemos todos, que a Justiça do Trabalho, embora contribua para uma flexibilização destrutiva, tem sabido impor limites importantes ao avanço de falsas negociações que implicam mera renúncia à ordem constitucional vigente.
E é por isso que muitos, capitaneados pelo Ministro Ives, insistem em reproduzir a velha cantilena, no sentido de dizer que ao se rejeitar a validade de cláusulas de negociações coletivas, acaba-se gerando insegurança para as empresas, o que lhes autorizaria a concluir que é preciso promover uma reforma trabalhista que privilegie a negociação coletiva e que imponha a solução dos conflitos por meio da arbitragem.
Esquecem-se, propositadamente, que negociação coletiva é expressão equivocada, plasmada na realidade de um contexto de flexibilização que não se coaduna com a própria razão de ser das normas construídas coletivamente. Os trabalhadores se reúnem em sindicatos e pressionam o capital para obter melhorias em sua condição social. E o fazem não apenas porque é essa a história da luta de classes e da própria construção coletiva do Direito do Trabalho, mas também porque foi essa a alternativa que lhes foi concebida como parâmetro de convivência.
O discurso de que é preciso dar autonomia às negociações para que, por meio delas, os trabalhadores possam aceitar piores condições de trabalho do que aquelas já conquistadas no processo histórico que precede a elaboração das leis, está completamente fora dos parâmetros jurídicos trabalhistas, representando, até mesmo, uma ofensa direta à Constituição e, claro, aos trabalhadores propriamente ditos.
O que está dito, expressamente, na Constituição, afinal, é que os direitos trabalhistas servem à “melhoria da condição social dos trabalhadores”.
Então, os direitos trabalhistas precisam, concretamente, avançar e não retroceder. Além disso, qualquer direcionamento econômico deve respeitar os “ditames da justiça social”, diz o artigo 170 da mesma Constituição e a livre iniciativa está vinculada a um valor social (art. 1º. IV), assim como a propriedade possui uma função social (art. 5º, XXIII).
E, de fato, a jurisprudência citada pelo Ministro não criou direitos, apenas impediu que direitos dos trabalhadores fossem negados por práticas administrativas empresariais, o mesmo se dando com as invalidações de normas coletivas, afinal, autonomia negocial não é fundamento para se negarem os parâmetros mínimos da proteção jurídica social, até porque a proteção não diz respeito aos interesses exclusivos dos trabalhadores e sim ao modelo de produção capitalista em geral, o qual requer padrões de concorrência, com limites mínimos de exploração do trabalho, para que não acelere sua lógica autofágica.
Ora, se um grande conglomerado econômico, com milhares de empregados, pudesse usar sua força para coagir, por meio da ameaça de desemprego em massa, os representantes sindicais para aceitarem condições de trabalho abaixo do padrão mínimo legal, o efeito negativo dessa situação não atingiria apenas os trabalhadores, mas a todas as demais empresas que, sem a mesma força coativa, não conseguiriam chegar ao mesmo patamar de exploração do trabalho. Essa possibilidade favoreceria os grandes conglomerados econômicos, providos pelo capital estrangeiro, e promoveria uma piora na já combalida distribuição da renda produzida, tudo em detrimento de empresas e empregos, e, claro, com o consequente aumento do sofrimento cotidiano dos trabalhadores.
O que o Ministro quer, portanto, é que o grande capital possa fazer o que quiser com a classe trabalhadora, ainda mais em uma realidade jurídica que nunca garantiu aos trabalhadores um efetivo direito de greve.
Aliás, é bastante interessante notar que dentre as diversas propostas realizadas, que são postas a partir da essencialidade da negociação coletiva, nada se fala em garantir aos trabalhadores todos os meios necessários para que exerçam o direito constitucional de greve, permitindo-lhes, pois, a ocupação, o piquete e não lhes recusando o recebimento do salário no período da greve.
Nenhum dos defensores dessa famigerada reforma trabalhista dedica uma linha sequer ao tema da garantia contra a despedida arbitrária, prevista constitucionalmente, mas que nunca chegou a ser aplicada, deixando os trabalhadores em estado de extrema vulnerabilidade. A ADI 1625, na qual, há décadas, se discute a constitucionalidade da denúncia da Convenção 158 da OIT, ainda não foi definitivamente apreciada e o pior é que o STF tende a declarar válida a denúncia até a data em que for proferido o julgamento.
De fato, falta sinceridade nas propostas de “reformas trabalhistas”.
Muito se fala em efetivação da negociação coletiva, mas nada se fala em garantir aos trabalhadores o direito de greve, com o alcance expresso na Constituição Federal (art. 9º). Os argumentos da liberdade e da modernidade se encerram quando os trabalhadores, para se inserirem com paridade mínima na negociação, organizam-se coletivamente e realizam uma greve. Aí só são lembrados, pelos defensores da ampliação da negociação, os pretensos direitos dos fura-greves e a necessidade de garantir o regular funcionamento das empresas.
Ora, se a ideia é fortalecer os sindicatos, comecemos por evitar decisões como a do Ministro Dias Toffoli, que negou o direito de greve a servidores públicos. Além disso, é imperioso impedir o uso de força policial contra grevistas; superar concretamente a discussão sobre a possibilidade de desconto dos dias parados; e, evidentemente, tratar com seriedade as questões do dever de motivação e da necessidade de garantias efetivas contra a perda do emprego.
Apenas desse modo se poderá atingir o ideal imaginado, pressuposto da negociação, de sindicatos com força política e social para pressionar o capital e, com verdadeira autonomia, entabular condições de trabalho que proporcionem melhoria das condições sociais aos trabalhadores.
Até lá, invocar a autonomia da vontade coletiva ou a necessidade de um “Estado menor” é debochar dos milhões de trabalhadores brasileiros, que conhecem bem as dificuldades que enfrentam para, individual ou coletivamente, fazer valer qualquer um dos direitos trabalhistas que lhes estão garantidos pela ordem jurídica vigente.
O Ministro Ives, defendendo o Estado mínimo, deixa de falar, em sua análise, da ação historicamente protecionista da Justiça do Trabalho frente às empresas para impedir os trabalhadores de realizarem greves, sem a interferência do Estado. Para conter e reprimir os trabalhadores, na visão empresarial, representada na fala de Ives, não tem essa de “Estado menor”; é de Estado forte, policial e interventor que se valem.
E a prática da atuação jurisdicional em diversos outros temas, bem ao contrário da retórica de Ives, tem sido bastante limitadora dos direitos trabalhistas e, com isso, o que se tem proporcionado é o aumento da má distribuição de renda do país.
O Ministro, que é Presidente do TST, mas que nunca fez uma audiência trabalhista na vida, demonstrando, pois, que não tem o menor conhecimento do que efetivamente se passa na Justiça do Trabalho de primeiro grau, considera que pode fazer análises tomando em consideração as dores dos empresários, mas o cotidiano das reclamações trabalhistas é de: horas extras não pagas, muitas vezes com cartões de ponto fraudulentos; assédio moral estrutural potencializado pela cobrança de metas e pelo pagamento de salário por produção; de trabalhadores sem registro em carteira; de pagamento de salários “por fora”; de trabalhadores dispensados sem o recebimento de verbas resilitórias; de terceirizados que sofrem todo o tipo de agressão a seus direitos, que já são bastante reduzidos; de uma multidão de mutilados na guerra do processo produtivo desregrado, que se desenvolve sem qualquer fiscalização do Ministério do Trabalho; dos calotes praticados de forma assumida e autorizados pela Justiça nas recuperações judiciais; da proliferação de acordos, com cláusula de quitação do extinto contrato de trabalho, que representam autênticas renúncias a direitos e que acabam incentivando a reprodução das reiteradas agressões de direitos trabalhistas.
A realidade nacional, vinda desde os primórdios da República, sem falar, é claro, dos 388 anos de escravidão, é a do intenso sofrimento da classe trabalhadora, dentro de um contexto de uma ordem jurídica trabalhista que jamais foi aplicada concretamente e que vem se decompondo desde 1965, com a criação sucessiva de diversos mecanismos de retração de direitos, sempre sob o mesmo argumento da necessidade de se reformar uma ordem jurídica anacrônica, para favorecer a “saúde das empresas” e “aumentar o nível do emprego”.
Dentro desse contexto, vem o Ministro Ives, parecendo que chegou de Marte, para dizer que a culpa dos problemas sociais e econômicos do país é dos reclamantes, que vão à Justiça pleitear seus direitos, dos advogados que formulam judicialmente essa pretensão, e de juízes do trabalho, que a acolhe!
A solução, apresentada por Ives sob o manto do espírito cristão, seria acabar com tudo isso e deixar que as empresas, com seu poder, decidam como querem explorar os trabalhadores, desprezando o dado de que elas próprias se encontram submetidas à lógica do capital.
O Brasil para o qual Ives, Temer, Ronaldo Nogueira, Rogério Marinho e tantos outros propõem o retorno ao século XIX, à livre negociação entre capital e trabalho, é o país que, em 15 de dezembro de 2016, foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por “não garantir a proteção de 85 trabalhadores submetidos à escravidão contemporânea e ao tráfico de pessoas, além de não ter assegurado a realização de justiça também para outros 43 trabalhadores resgatados desta mesma condição”.
É o país em que a maioria absoluta das demandas trabalhistas versa sobre rescisão não paga. É o país em que cerca de 554 mil crianças, entre 5 a 13 anos, estavam trabalhando, em 2014, segundo o PNAD.
É, por fim, o país em que a negociação coletiva é quase sempre uma farsa, uma autorização para a negação de direitos constitucionalmente assegurados.
Não é um acaso, portanto, que essas normas sejam trazidas aos autos, no mais das vezes, pelas empresas, e não mais pelos empregados para sustentar suas pretensões.
Enquanto os empregados recorrem à Justiça do Trabalho para receber salários ou ter garantida a jornada constitucionalmente assegurada, os empregadores invocam em seu favor normas coletivas que regulam “banco de horas”, supressão de horas in itinere, redução de intervalo, além de outras ilegalidades, sendo que, na maioria das vezes, conforme se verificam nos processos judiciais, mesmo as normas coletivas, restritivas de direitos, não são respeitadas.
Segundo pesquisa realizada pelo DIEESE, publicada em maio de 2015, com o título “A saúde do trabalhador no processo de negociação coletiva no Brasil”, muitas cláusulas dos acordos e convenções coletivas apenas reproduzem o que está previsto em lei. Há poucos avanços e, ainda assim, as poucas conquistas não são observadas na prática das relações de trabalho. O estudo evidencia que a negociação coletiva é uma “ferramenta de intervenção, com o potencial de obter avanços significativos”, mas apenas se: a) os sindicatos tiverem poder de pressão para fazerem aprovar normas efetivas de melhoria das condições de trabalho e b) o Estado garantir sua ampla aplicação.
Nenhuma dessas condições existe no Brasil.
A notícia fresca de hoje, 21/02/17, é a de que 7 milhões de trabalhadores foram vítimas de calote de empresas quanto ao recolhimento do seu FGTS.
De que país nos está falando o Ministro Ives, então?
Aliás, vale ressaltar a contradição insuperável do Ministro de vir a público repetir a batida versão de que a CLT, de 1943, é anacrônica e, ao mesmo tempo, invocar, como parâmetro de modernidade, o texto da Encíclica RerumNovarum, de 1891, esquecendo-se, ainda, de que ambos os documentos em questão partem do mesmo pressuposto de que a proteção social é medida de contenção necessária à exploração do trabalho pelo capital.
O Ministro Ives expressa, ainda, o argumento ilusionista de que com a queda do muro de Berlim terminou a luta de classes, como se a paz e a harmonia sociais tivessem nascido magicamente naquele mesmo instante, desconsiderando, por completo, a realidade das relações de trabalho que todos os dias bate a porta da Justiça do Trabalho.
Todos esses falaciosos e antigos argumentos, já superados pela experiência histórica, representam uma apologia ao descumprimento dos compromissos firmados na formação do Estado Social Democrático, que foram, inclusive, assumidos por nossa Constituição Federal, e, mesmo sem a pretensão de fazê-lo, acabam reforçando as lógicas escravistas que insistem em assombrar a realidade das relações de trabalho no Brasil, constituindo, pois, uma aposta na barbárie. Estão, portanto, muito distantes do princípio básico cristão, de tratar a todos, sem distinção, como irmãos, uma vez que meramente alimentam a visualização econômica imediatista de que os trabalhadores não são nada além do que força de trabalho a serviço do capital.
Valdete Souto Severo é Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS. Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.
Jorge Luiz Souto Maior é jurista e professor livre docente de direito do trabalho brasileiro na USP. É juiz titular na 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí.
Fonte:http://justificando.cartacapital.com.br