Guedes expõe o Brasil a reviver o pesadelo da vulnerabilidade externa

A queima de reservas cambiais acelerou nos últimos meses (Foto: Cris Faga/NurPhoto)
A QUEIMA DE RESERVAS CAMBIAIS ACELEROU NOS ÚLTIMOS MESES (FOTO: CRIS FAGA/NURPHOTO)

A combinação de medidas econômicas desastrosas empurra o País para uma crise cambial e fragiliza proteção contra choques externos

[dt_gap height=”20″ /]

Naquilo que depender do ministro Paulo Guedes, a vulnerabilidade externa, pesadelo da economia nos anos 1980 e 1990, talvez volte a abalar o País antes do que se imagina, alertam vários economistas. Não satisfeito em torrar empresas e outros bens e recursos nacionais para pagar juros da dívida pública, o Ministério da Economia acelera, com a mesma finalidade, a venda de reservas cambiais. Além disso, prepara a abertura de contas bancárias em dólar no Brasil e pretende promover um rebaixamento unilateral de tarifas de importação. Combinadas, essas iniciativas têm força suficiente para encaminhar a médio ou longo prazo uma crise cambial, principalmente em um contexto de crise externa, advertem muitos analistas.A queima de reservas por Guedes, que criticou o seu “excesso” durante a campanha eleitoral, acelerou. “O Banco Central vendeu mais de 25 bilhões de dólares em outubro e novembro. A estratégia vai em linha com a redução do papel do Estado e de seus instrumentos de atuação na economia. A continuidade dessa política pode fragilizar as nossas proteções contra choques externos”, alerta o economista Pedro Rossi, da Unicamp, especialista na área cambial. Em agosto, quando o governo anunciou a primeira venda, as reservas somavam 388 bilhões de dólares. A aceleração da queima de divisas para pagar juros, diz Rossi, “representa uma sinalização perigosa, dependendo de até onde vai essa política. A história ensina que os países que fazem uma ampla abertura financeira devem ter capacidade de enfrentar ataques especulativos e fuga de capitais. As crises cambiais da globalização mostram isso, como no caso do México em 1994, da Ásia em 1997, da Rússia em 1998, do Brasil em 1999 e da Argentina em 2001”.

Há neste governo “total falta de noção sobre como funcionam a economia brasileira e as economias emergentes em geral. O Brasil tem um histórico de crises ligadas à questão externa e, em todas elas, exceto na de 2015, a ausência de reservas tornava o País mais vulnerável”, chama atenção a economista Esther Dweck, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Do ponto de vista de uma economia que tem fluxo de capital, prossegue, “o volume de reservas acaba sendo um colchão importante para fazer frente quando há uma reversão, com saída de capital”, sublinha a professora.

 

Contas bancárias em dólar, modelo que aprofundou a crise argentina

 

Ao que tudo indica, o Ministério da Economia não reconhece “uma diferença importante e qualitativa entre as moedas centrais, que exercem as funções clássicas da moeda em âmbito internacional, a exemplo do dólar, e as moedas periféricas, que não são moedas em âmbito internacional, ou seja, não exercem as funções da moeda nesse âmbito, como o real”, sublinha Bruno De Conti, professor da Unicamp.

[dt_gap height=”20″ /]
O MINISTRO DA ECONOMIA, PAULO GUEDES

 

A vulnerabilidade externa da economia brasileira diminuiu comparativamente à situação do início do século em razão da redução da dívida externa e, assim, do descasamento de moeda, destaca a economista Daniela Magalhães Prates, professora do Instituto de Economia da Unicamp. “A maior redução ocorreu na dívida externa pública, com a recompra dos títulos Brady no primeiro governo Lula. Tal redução, ao lado do acúmulo de reservas internacionais, tornou o setor público brasileiro credor em moeda estrangeira, o que possibilitou a adoção de políticas contracíclicas em resposta ao efeito-contágio da crise financeira global de 2008, pois a depreciação do real teve impacto positivo sobre a situação fiscal. Mas a economia brasileira tem déficit em conta corrente e, desse modo, continua dependente da absorção de recursos externos”, chama atenção a professora da Unicamp.

Além disso, acrescenta, “a redução da dívida externa foi acompanhada pelo aumento dos investimentos de portfólio no País (em ações e títulos públicos), o que tornou nosso mercado financeiro e de câmbio vulnerável às decisões de alocação de portfólio dos investidores globais, guiados pela busca de ganhos especulativos. Ou seja, houve uma metamorfose na vulnerabilidade externa da economia brasileira, mas ela não desapareceu. Por isso, precisamos manter um estoque elevado de reservas internacionais. Um fator positivo é que agora, com a redução da taxa de juros doméstica, o custo de manutenção das reservas é menor”.

 

FUTURO? NA CRISE DE SETEMBRO, CADA ARGENTINO PODIA COMPRAR 10 MIL DÓLARES POR MÊS E EXPORTADORES TINHAM CINCO DIAS PARA REPATRIAR A MOEDA AMERICANA (FOTO: RICARDO CEPPI/ GETTY IMAGES)

 

Pouco abordada no Brasil, a metamorfose na vulnerabilidade externa é, entretanto, um tema importante no debate internacional. “Após uma série de crises com graves consequências econômicas e sociais nos anos 1990 e início dos anos 2000, as economias emergentes e em desenvolvimento tornaram-se ainda mais intimamente integradas ao sistema financeiro internacional inerentemente instável. Não apenas tiveram seus vínculos tradicionais aprofundados e os balanços externos expandidos rapidamente como também a presença estrangeira em seus mercados domésticos de crédito, títulos, ações e propriedades atingiu níveis sem precedentes. Novos canais surgiram, assim, para a transmissão de choques financeiros e quase todos os países em desenvolvimento estão agora vulneráveis, independentemente de seu balanço de pagamentos, dívida externa, ativos externos líquidos e posições de reservas internacionais, embora estes desempenhem um papel considerável na maneira como tais choques poderiam afetá-los. A estabilidade dos mercados bancários e de ativos domésticos é suscetível a abalos mesmo em países com fortes posições externas”, alerta Yilmaz Akyüz, economista-chefe da organização intergovernamental South Centre e ex-diretor da Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento.

O projeto de lei para autorização da abertura de conta bancária em dólar no País, encaminhado pelo Banco Central ao Congresso, “é risco de dolarização da economia, é uma ‘argentinização’ do Brasil”, dispara Rossi. A proposição visa instituir as bases para uma liberalização plena do mercado de câmbio. “Imaginem se, em um momento de incerteza, todos nós pudéssemos ligar para o gerente do banco e transferir nossos recursos de uma conta em real para uma conta em dólar. Cada um de nós se tornaria um potencial especulador contra o real. A volatilidade cambial iria aumentar muito e o dólar se tornaria cada vez mais a referência, como aconteceu na Argentina e no Equador.”

 

A taxa de câmbio brasileira é uma das mais voláteis do mundo. Tende a piorar

 

O risco da proposta “é extremamente elevado porque o governo e sua área econômica não têm nenhuma preocupação com a questão externa, acha que o câmbio flexível resolve tudo, então na cabeça deles o País não precisa ter nenhum tipo de proteção se houver um regime de câmbio flexível. Só que a liberalização cambial para permitir que os correntistas possam ter contas bancárias em dólar no Brasil é o princípio da dolarização”, concorda Dweck.

Esse projeto “intensificará nossa vulnerabilidade externa, pois seu objetivo é completar o processo de abertura financeira da economia brasileira”, estima Daniela Prates. O risco a curto prazo, diz, é um aumento da volatilidade cambial com vários perigos. “A taxa de câmbio brasileira é uma das mais voláteis do mundo. Se os objetivos do projeto de aumento da internacionalização do real e da conversibilidade interna (autorização de transações em moeda estrangeira no País) se concretizarem, as compras/vendas da moeda brasileira para obtenção de ganhos especulativos aumentarão, ampliando a volatilidade, que tem efeitos adversos sobre as decisões de produção, investimento, exportação e importação. O risco a médio e longo prazo é a dolarização da economia brasileira, que resultará na redução da nossa soberania monetária, que conseguimos manter mesmo no período de alta inflação.”

[dt_gap height=”20″ /]

GANGORRA | REBAIXAR UNILATERALMENTE TARIFAS DE IMPORTAÇÃO É ARRISCAR UMA INUNDAÇÃO DE PRODUTOS ESTRANGEIROS E A PERDA DE RECEITAS E DE RESERVAS CAMBIAIS (FOTO: MARCOS PORTO/SECOM ITAJAÍ)

[dt_gap height=”20″ /]

A intenção do governo de rebaixar unilateralmente as tarifas de importação só vai piorar a situação, explica Dweck: “Em um muito provável ambiente de concorrência externa gigantesca, isso significa que o País poderá sofrer uma inundação de importações sem nenhuma garantia de abertura de mercado para as nossas exportações. Depois haverá um problema mais grave na balança comercial, com perda de dólares, porque ocorrerá um aumento de importações sem aumento de exportações, com perda de reservas que nos deixará numa situação muito grave externamente. Mas, na visão do governo, não tem nenhum problema liberar, porque o câmbio ajusta. Só que o câmbio ajustar significa uma fuga de capitais muito forte e tende a ocorrer uma desvalorização cambial, com todos os impactos conhecidos sobre a inflação, especialmente sobre a renda. Então é muito grave esta proposta”, sublinha a economista.

A maior parte dos brasileiros até agora não se deu conta da ameaça representada pela política fundamentalista de livre-mercado de Guedes. “Não é por meio da flexibilização do mercado cambial que o real se tornará uma moeda mais forte, mais confiável aos olhos do investidor internacional. Ao contrário, o tiro sairá pela culatra, pois com a flexibilização o real se tornará ainda mais volátil e menos confiável fora e, no limite, para os brasileiros também, pois passariam a preferir dólares. Talvez seja isso mesmo que o governo queira: acabar com a moeda nacional, forçando-nos a usar dólar”, dispara De Conti.

[dt_gap height=”60″ /]

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Fale conosco!
X