Governo manipula auto de infração para justificar Portaria e tenta desqualificar o combate ao trabalho escravo

Auditor-Fiscal entrevista trabalhadores

Presidente da República adota a mesma conduta que os empresários escravagistas ao tentar reduzir as infrações a questões irrelevantes para a caracterização do crime de trabalho escravo

Por Nilza Murari

Em entrevista concedida ao jornalista Fernando Rodrigues, do Portal Poder360, publicada nesta sexta-feira, 20 de outubro, o presidente da República, Michel Temer, apresentou um auto de infração com quesitos que ele alegou terem sido usados para caracterizar um caso de trabalho escravo. O auto descreve infrações leves como falta de saboneteira e suporte de toalhas em um banheiro, extintores de incêndio e escada em beliche. São infrações, de fato, insuficientes para flagrar trabalho escravo.

Entretanto, a afirmação do presidente da República, que recebeu os autos das mãos do ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira – nesta data ex-ministro, pois foi exonerado para votar a favor do presidente na Câmara dos Deputados –, não se sustentou por muito tempo. Foi prontamente desmascarada pela realidade dos fatos, pois todas as ações fiscais são fartamente documentadas, registradas em Relatórios de Inspeção do Trabalho, com detalhamento, entrevistas de trabalhadores e imagens. Uma simples consulta à Secretaria de Inspeção do Trabalho poderia ter poupado o presidente da República de mais um constrangimento público.

Ao se utilizar do expediente de tentar minimizar o conjunto de infrações constatadas pelos Auditores-Fiscais do Trabalho e parceiros nas fiscalizações de combate ao trabalho escravo – como procuradores Federais e do Trabalho e policiais Federais e Rodoviários Federais –, o presidente da República usou a mesma conduta dos empresários flagrados na prática do crime.

Para o presidente do Sinait, Carlos Silva, “deliberadamente o governo usou recortes seletivos trazendo à luz o que é praticamente irrelevante para o caso e ocultou o que é grave nesta ação e em outras tantas. A intenção por detrás da revelação dessas informações escolhidas a dedo é desqualificar um trabalho de natureza técnica e construído coletivamente com todos os envolvidos: procuradores e policiais que participam das ações. Assim os empresários tentam vender uma imagem ruim da fiscalização e reduzir a importância da exploração sobre os trabalhadores”.

A fiscalização

A ação fiscal da qual faz parte o auto de infração apresentado foi realizada em 2011, no município de Americana, na Região Metropolitana de Campinas (SP). Participaram da ação os Auditores-Fiscais do Trabalho João Batista Amâncio – hoje aposentado – e Márcia Carolina Marques – em licença para realização de curso no exterior –, acompanhados pelo procurador do Trabalho Sílvio Beltramelli Neto. A ação foi iniciada em 10 de março e concluída em 20 de abril. Dentre os 64 trabalhadores encontrados, 26 não tinham registro na Carteira de Trabalho e Previdência Social, e 63 foram resgatados de condições análogas às de escravos. A empresa MRV Engenharia e Participações S/A pagou, a título de rescisão de contratos, R$ 206.900,50. Foram emitidas 63 guias de Seguro-Desemprego especial para trabalhadores resgatados do trabalho escravo.

O auto de infração apresentado isoladamente é apenas um dos 44 que foram lavrados, cujo conjunto caracterizou o trabalho escravo contemporâneo. Entre as infrações trabalhistas constatadas estavam a falta de pagamento de salário, retenção de documentos como Carteira de Trabalho, falta de Equipamentos de Proteção Individual – considerando que era uma obra de construção civil, um dos setores que mais registra acidentes de trabalho no país –, banheiros sem pia ou vasos sanitários, local inapropriado para a guarda de marmitas de comida – escassa, de má qualidade e até ausente –, alojamentos sem água potável, sem limpeza, sem roupas de cama e com instalações elétricas precárias configurando o risco de choques e incêndio, falta de extintores de incêndio nos alojamentos, não fornecimento de uniformes para o trabalho, falta de mesa nos refeitórios, não concessão de intervalo para almoço, não realização de exames médicos, ausência de CIPA, entre vários outros itens descritos no Relatório de Inspeção do Trabalho.

O conjunto das irregularidades e infrações, todas detalhadas no relatório, e ainda a constatação de ocorrência de acidentes de trabalho, caracterizou a situação de trabalho escravo, agravada pelo fato de que a maioria dos trabalhadores era migrante, especialmente dos Estados da Bahia, Alagoas e Maranhão, trazidos a São Paulo sem a prévia comunicação ao Ministério do Trabalho, exigência da lei para evitar aliciamento ilegal de mão de obra.

Ficou clara a restrição do direito de ir e vir dos trabalhadores, em razão de dívida contraída com o aliciador em razão da viagem até São Paulo, alimentação e outros itens, além da retenção de documentos e não pagamento de salário.

A ação fiscal foi amplamente noticiada, à época, de forma que não há como esconder a realidade que os Auditores-Fiscais do Trabalho encontraram – trabalho escravo urbano. O relatório foi enviado ao Ministério Público do Trabalho e Ministério Público Federal, Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de São Paulo, entre outros órgãos, e ao próprio Ministério do Trabalho – Superintendência Regional de São Paulo e Secretaria de Inspeção do Trabalho.

Desrespeito

O Sinait repudia o uso do auto de infração fora do contexto em que foi de fato lavrado por parte de autoridades que tentam desqualificar a ação dos Auditores-Fiscais do Trabalho no combate ao trabalho escravo. Uma atividade exclusiva de Estado, prevista na Constituição Federal e que faz parte da organização estrutural do Estado brasileiro. O governo foge à razão ao tentar manipular informações que são ricamente documentadas, cercadas de todos os cuidados exatamente para não deixar brechas para contestações que faltam com a verdade. Há testemunhas, há depoimentos, há relatórios, há notícias.

Carlos Silva reitera que essa fala do governo sobre a fiscalização usada como exemplo para justificar a Portaria 1.129/2017 “é uma demonstração de desrespeito em relação às autoridades responsáveis pela condução das ações de fiscalização do trabalho escravo. Desrespeita não apenas os Auditores-Fiscais do Trabalho, mas todos os integrantes do Grupo Interinstitucional de Combate ao Trabalho Escravo – procuradores do Trabalho, procuradores Federais e policiais Federais e Rodoviários Federais. Fica cada vez mais claro que o atual governo se posiciona contra os que se dedicam a combater e erradicar o trabalho escravo”.

Fonte: Sinait

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