EXPERIÊNCIA CHILENA: “Previdência deve alcançar quem não pode poupar, e incentivar quem tem condições”

 

Por Mariana Oliveira

Desde 1981, o Chile tem um sistema de fundo de pensões para aposentadorias. Funciona assim: o trabalhador, quando consegue o seu primeiro emprego, pode ir até uma Administradora de Fundos de Pensões (AFP) e abrir uma conta onde começará a poupar 10% do salário todo mês. Ao atingir a idade mínima para se aposentar — 60 anos para as mulheres e 65 anos para os homens  —  terá uma pensão mensal vitalícia com base na rentabilidade do dinheiro que foi investido pela administradora.

O sistema foi instituído pela ditadura de Augusto Pinochet. O futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, gosta bastante dele e discute a possibilidade de implantá-lo no Brasil. Pudera: ele fez parte do time de economistas da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, contratado pelo governo Pinochet como consultores da área econômica. Ficaram conhecidos como Chicago Boys e, entre diversas reformas de orientação neoliberal, desenharam o sistema previdenciário do Chile.

Mas é um sistema que funciona para quem pode poupar e para quem é comprovadamente pobre — porque uma reforma de 2008 criou um sistema de pensão básica universal par quem não pode contribuir. É o que avalia o economista Andras Uthoff, professor da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile e especialista no assunto. Na média, segundo ele, o valor das pensões, que inicialmente foi prometido para ser até 70% do salário de quem poupou, é muito baixo.

Uthoff foi conselheiro regional da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que participou da Comissão sobre Reforma do Sistema de Pensões e da Comissão sobre Reforma do Sistema de Seguro de Saúde do Chile, e veio ao Brasil a convite do Crivelli Advogados Associados para contar a experiência chilena em um momento de grandes discussões e incertezas acerca do tema.

Em entrevista exclusiva à ConJur, Uthoff afirma que a ideia admirada por Paulo Guedes não funcionaria no Brasil. Principalmente por causa do alto custo da transição do modelo solidário atual para esse modelo capitalizado. “O custo de transição começou em 1981, e ainda estamos pagando. São 37 anos e ainda devemos sobretudo as pensões de pessoas que se aposentaram no sistema antigo”, explica.

Leia a entrevista:

ConJur — Como o senhor classifica o sistema previdenciário do Chile?
Andras Uthoff — Se um sistema de pensão necessita prover proteção, com uma ampla cobertura, suficiência e qualidade de pensão, o sistema do Chile é ruim. Ele tem, hoje, uma cobertura relativamente boa, já que 85% dos idosos recebem uma pensão. Mas o valor da mensalidade é muito baixo: 79% das pessoas recebem abaixo do salário mínimo e 44% estão abaixo da linha da pobreza.

ConJur — O que faz o pagamento ser baixo para quem poupou?
Andras Uthoff — No mecanismo de poupança, se eu poupo tenho que poupar todos os meses. Em 40 anos, seriam 480 meses para poupar. Mas não há garantias de que as pessoas terão emprego formal e estável por 480 meses de suas vidas laborais. Elas estão na informalidade, na precariedade, no empreendimento, e não necessariamente cotizam.

ConJur — Existem outros fatores que afetam o valor da aposentadoria?
Andras Uthoff — Os 10% não são suficientes. Deveria ser mais. Por isso hoje já estamos falando que o empregador deveria colocar algo adicional. Além disso, nossa idade de aposentadoria segue sendo 60 para mulheres e 65 para homens. Mas, quando você vai se aposentar, te aplicam a expectativa de vida muito longa e isso faz diminuir a renda vitalícia. A rentabilidade dos investimentos feitos pelos fundos de pensões também é um fator.

ConJur — Do que o senhor sabe do momento atual político e econômico no Brasil, seria possível implantar um sistema parecido com o do Chile?
Andras Uthoff — Não. Por um motivo principal: o custo da transição. O custo para substituir um sistema de seguridade social contributivo como existe hoje no Brasil pela capitalização individual deve ser assumido pelo Estado. Não há condições para arcar com esse custo no momento. No Chile também não havia, mas isso foi feito durante o período da ditadura, então o orçamento foi ajustado, com corte de outros gastos.

ConJur — Qual é o custo?
Andras Uthoff — O custo da transição é muito longo, porque há um valor da dívida do sistema antigo, no qual você pega dinheiro dos trabalhadores ativos para pagar as pensões dos passivos. Ou seja, ao querer parar esse sistema, você tem a dívida já contraída com os ativos e uma dívida com os passivos. Esse valor é muito alto e se paga em muito tempo. Nós, no Chile, ainda estamos pagando. Gastamos mais com o custo da transação e com os militares do que com o sistema solidário de pensões.

ConJur — Mas o sistema individual é sustentável?
Andras Uthoff — 
Uma vez que o Estado está a cargo do custo de transição e também se compromete a pagar as Forças Armadas, que têm um custo significativo, um sistema de capitalização é totalmente sustentável, porque são contratos individuais. Se você não poupa, não recebe nada. Se poupa, recebe algo. O aporte do Estado só entra a partir do momento em que muita gente não pode guardar dinheiro com a criação de um componente solidário. Mas, pela lógica de um mercado de poupanças, é totalmente sustentável. O que quebra, o que não é sustentável, é a situação do aposentado, porque muitos não irão receber nada.

ConJur — Um modelo previdenciário que não tem contribuição do empregador não é injusto? Como os chilenos encaram isso?
Andras Uthoff — Tirar a contribuição do empregador da seguridade social foi parte de um modelo neoliberal do Chile, implementado por volta de 1981, por um grupo de economistas de Chicago que apoiavam a ditadura. Eles diziam que, com a poupança financeira aberta pelos próprios trabalhadores, os empregadores poderiam aumentar a oferta de empregos. Essa era a promessa, mas isso não aconteceu. Por isso, hoje, o que estamos discutindo no Chile é a possibilidade de que os empregadores voltem a fazer parte do sistema.

ConJur —  No Brasil, a seguridade social tem um papel de diminuir a pobreza e aumentar a igualdade de renda. Como isso funciona no Chile?
Andras Uthoff — Falando de toda a política de proteção social, o Chile tem projetos parecidos com os brasileiros, como o Bolsa Família. Lá temos o programa Chile Solidário e outro que se ocupam especificamente da situação de pobreza. Mas em matéria previdenciária, até o ano de 2008, não havia nenhuma opção para os idosos.

ConJur —  Como foi a reforma de 2008?
Andras Uthoff —  Na reforma, do governo de Michelle Bachelet, foi criado o Pilar Solidário, que entrega dois benefícios: uma pensão básica solidária para quem não participa do sistema de capitalização e um pequeno complemento para quem poupou algo. Mas, como no Chile a participação do Estado não é para garantir direitos, mas subsidiária, essa lógica só se implementa quando você demonstra que não tem uma pensão e é pobre. Tem que provar que não pode sobreviver, que não tem uma renda razoável. Ou seja, se você é um idoso sem pensão ou com uma pensão baixa, tem que estar dentro dos 60% das famílias mais pobres para receber. Não é um direito, é uma política assistencial.

ConJur — O que acontece com quem não está na margem dos mais pobres mas não participa do sistema de poupança?
Andras Uthoff — Há um ótimo diagnóstico feito por especialistas em fundos de pensões que diz que ao sistema chileno faltam peças, falta estrutura. Ele atende àquele que tem um emprego estável formal com bom salário, que há 40 anos poupa com um salário alto, e seguramente terá uma boa pensão. E depois atende às famílias pobres. Mas esse meio, da classe média, não tem absolutamente nada. Eles ficam com suas baixas poupanças, e se não tiverem poupado o suficiente não terão pensão. O sistema tem que construir a parte mais solidária, que está faltando.

ConJur — Justamente para a classe média, então?
Andras Uthoff — No Chile, quando você é classe média na vida ativa, significa que ganha cerca de US$ 1,5 mil. Mas quando chega à aposentadoria, terá somente US$ 300. Você passa a ser pobre. A classe média é ativa, mas, uma vez que se aposenta, passa a ter uma renda muito menor e a sobreviver com seus familiares ou vender ativos, porque o sistema previdenciário não provê uma solução para eles.

ConJur — Como contribuem os funcionários públicos?
Andras Uthoff — O funcionário público e o funcionário privado cotizam exatamente igual. O sistema assumiu que um funcionário público pode mudar para um emprego privado ou vice e versa. E para isso o que necessita são duas coisas: que as condições sejam as mesmas. E seu direito é portátil. Se eu mudar de um emprego público para um privado, minhas economias vão comigo, já que elas estarão em uma AFP [Administradora de Fundo de Pensão]. Então, as condições do empregado público e do empregado privado no Chile são exatamente o mesmo: cotizam 10% do salário mais as comissões.

ConJur —  E quais são os valores dessas comissões?
Andras Uthoff — As comissões começaram sendo muito altas. Mas diminuíram com as reclamações de que a indústria não era competitiva e abusava na cobrança das comissões. Inicialmente chegaram a ser quase 0,05% dos salários. Hoje em dia está em torno de 0,02%, 0,03%. Ainda assim, a rentabilidade das administradoras de fundos de pensões somente com as comissões, não com os investimentos, há pouco era 25%, considerada muito alta. Isso claramente diminui as rendas dos trabalhadores por terem que pagar por um serviço que o Estado deveria estar fazendo. Ainda há espaço para seguir baixando as comissões.

ConJur — O senhor disse que não era a favor da volta de um sistema integralmente público. Qual seria o seu ideal de previdência?
Andras Uthoff — O sistema previdenciário evoluiu no mundo inteiro. Hoje há a escada da seguridade social, ou o que os especialistas chamam de sistema de múltiplos pilares. É necessário uma faixa para a pobreza, que pode ser um benefício não contributivo e que seja o mais universal possível, que não discrimine. E então um sistema público de distribuição, ou seja, solidário, onde as contribuições podem compensar aqueles que poupam e os que não poupam mais as contribuições do Estado e dos empregadores. E, em terceiro lugar, um pilar obrigatório ou voluntário de capitalização individual.

ConJur — Que é o que já existe no Chile.
Andras Uthoff — Já temos o pilar de capitalização individual, necessitamos reconstruir as bases. Temos um pilar solidário insuficiente. Tem que ampliar e fazer esse componente, que é o segundo pilar de seguridade social. Diferente do que pode acontecer no Brasil, no Chile nós já temos esse sistema ancorado. Então não precisamos atuar somente com a distribuição, porque há o investimento dos trabalhadores. Pouco, mas há. Em consequência, o que nós precisamos fazer é construir esse sistema público como uma combinação entre distribuição e capitalização adequada, com muita solidariedade para dar cobertura a todos. Ou seja, ainda temos que mudar, como estão fazendo muitos países da Europa, que é ter um sistema muito bom de cobertura básica para toda a população, e como complemento deixar a capitalização privada.

ConJur — Essa garantia de base não desestimularia as pessoas a complementar suas pensões com o sistema privado?
Andras Uthoff — Teria que ser uma garantia no nível de gerar incentivos suficientes e ainda  criar o interesse de complementar um pouco mais com o sistema contributivo. Não uma garantia muito alta que a pessoa diga “bom, isso me basta, não poupo nada”. Precisa ser uma garantia que permita alcançar certas pessoas que não têm capacidade de poupar, mas incentivar àqueles que tem podem fazer isso.

ConJur — Isso seria muito parecido com o que temos hoje no Brasil: um sistema público de previdência e opções privadas não obrigatórias.
Andras Uthoff — O Brasil tem uma estrutura que precisa melhorar, mas não mudar.

ConJur — O senhor sugere um caminho para melhorar?
Andras Uthoff — Tem que ordenar a parte mais social no sentido do que é possível financiar e o que o Estado não pode entregar. Isso tem que ser organizado com uma discussão, e com os contextos macroeconômico e de desigualdade que existe no país. Posteriormente ainda podem analisar o programa de previdência complementar, como vocês chamam aqui, e que se passa mais no nível da empresa mas poderia ser modificado para ser feito a nível individual.

ConJur — Que é o sistema privado não obrigatório?
Andras Uthoff — Sim. Onde será possível observar que a grande maioria do país, por suas condições de renda, ficará somente na parte básica, sem ter possibilidade de um rendimento complementar. Por isso, essa base precisa ter ampla cobertura e suficiência.

ConJur — E nesse caso não seria preciso comprovar a situação de pobreza para ter acesso ao benefício básico?
Andras Uthoff — 
Creio que não, porque os sistemas de seguridade social deveriam ser universais, são direitos dos cidadãos. Agora, quando há restrições é possível colocar certas limitações como tempo de residência ou uma condição socioeconômica para limitar um pouco, mas esses são as detalhes que precisam ser mais bem pensados.

ConJur — No Brasil, a seguridade social, incluindo a Previdência, é constitucional. E no Chile?
Andras Uthoff —
 No Chile, a ditadura militar fez uma nova constituição muito neoliberal, na qual praticamente se eliminou a seguridade social. E os custos passaram a ser prioridade dos indivíduos. Em casos de morte, invalidez, por exemplo, você pode ir à AFP e fazer um seguro de vida, e em caso de saúde vai a uma indústria que te vende seguros de saúde individuais.

ConJur — Isso aumentou a desigualdade?
Andras Uthoff — 
O que aconteceu é que, como os riscos são muito altos na saúde, o seguro é muito caro e muita gente não pode pagar. E, como consequência, o Estado precisou entrar novamente e criar um fundo nacional de saúde para atender a maioria da população. A estrutura neoliberal atende somente 17% da população. Os outros 83% seguem no sistema público de saúde. No caso das pensões, 21% das pessoas recebem uma aposentadoria maior que um salário mínimo. 79% dos que recebem estão abaixo do salário mínimo.

ConJur — Quais são os principais critérios estabelecidos para as empresas que entram no mercado de fundos de pensões? 
Andras Uthoff — Há um custo de entrada que é muito importante e também há uma exigência do Estado de que, para poder participar na administração dos fundos dos trabalhadores, a empresa tem que colocar dinheiro do seu próprio patrimônio para responder por possíveis perdas. Esse valor é de 1% do valor dos ativos que você administra.

ConJur — Há outras barreiras?
Andras Uthoff —  As administradoras não podem fazer com o dinheiro dos trabalhadores o que querem. Há uma regulação prudencial dos investimentos que é seguida por investidores e por instrumentos. Os investimentos são classificados por riscos. Não podem ser instrumentos muito arriscados. Isso significa de certo modo que tem sido a própria regulação, que mudou ao longo do tempo, que vem mudando a composição dos ativos dos fundos, que se iniciou basicamente com bônus do setor financeiro e alguns instrumentos do Banco Central. Depois as letras hipotecárias, as privatizações de empresas públicas, e hoje também está o setor externo.

ConJur — Um comentário comum é que o dinheiro do trabalhador chileno não está no Chile. Faz sentido isso?
Andras Uthoff — Metade do fundo dos trabalhadores está investido no exterior. Quando eles dizem que os investimentos deveriam gerar riqueza no próprio país, pela dinâmica que tem a lógica de regulação, é exatamente o que não acontece.

ConJur — E qual a opinião do senhor sobre essa situação?
Andras Uthoff — O desafio que temos na América Latina no geral é a falta de poupança. Esse não é um investimento nacional, é dinheiro dos trabalhadores. O sistema faz a intermediação financeira, mas quando ele faz isso, eu não sei se está comprando um bônus para uma dívida ou uma ação para subir o preço de uma empresa ou ainda para acumular nova riqueza. Ou seja, o que precisamos na América Latina, e o Brasil não é uma exceção, é criar instrumentos que tenham como respaldo a geração de novas riquezas internas. Deveríamos apoiar as pequenas e médias empresas, onde são gerados mais empregos. Mas isso é tão perigoso que habitualmente não há instrumento para colocar na bolsa.

ConJur — E qual a solução?
Andras Uthoff — Necessitamos gerar esses instrumentos financeiros que permitam vincular a criação de riqueza à possibilidade de que a poupança dos trabalhadores, por exemplo, fique segura. Sem isso, todos os valores acabam se revertendo em fundos de dívidas de países estrangeiros ou outra coisa que a classificadora de riscos supõe que é segura.

 

Fonte: Conjur

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Fale conosco!
X