Excelente texto do colega Eduardo Kimura, em resposta à ciluna da jornalista Raquel Landim, que nos depreciou:

Carta aberta à colunista Raquel Landim.

Prezada Raquel Landim,

Sobre a sua última coluna da Folha de São Paulo de 18/08/2017 “Quem paga R$ 17 mil por mês para um recém formado?”, sinto-me na obrigação de, como jornalista, servidor público e acima de tudo, cidadão brasileiro indignado com todo o delicado momento histórico por qual o país sobrevive, refutar cada argumento do seu texto que, torço muito para que tenha sido redigido sob um lapso de tempo, ou qualquer outra justificativa plausível, mas não por outros motivos inconfessáveis, visto que, como colega de profissão, sei que deve saber do fundo do seu coração, da importância que reside das letras que emanam do seu texto, e como seus argumentos podem vir a influenciar os leitores, mudando os rumos de parcela significativa da opinião pública.

Sim, também acredito que é na crise que surgem oportunidades. Foi uma crise na profissão de jornalista que me incentivou a buscar no serviço público a oportunidade que a iniciativa privada me negava. Queria muito trabalhar com jornalismo cultural, mas em Londrina, minha cidade natal, as oportunidades na área são bem restritas. Recém graduado pela UEL, e após tentativas frustradas em processos seletivos de trainee, onde na fase de dinâmicas de grupo eu não conseguia ser aprovado (pois acredito que não sabia fazer uma “performance” que agradasse), decidi que eu mesmo iria provar o meu valor. Foi então que comecei a estudar para a carreira de Auditor-Fiscal da Receita Federal.

O que parece ser para você inacreditável, creio que seja só desconhecimento. O concurso da Receita Federal é um dos mais cobiçados justamente pelos altos salários, que hoje em início de carreira está em R$ 19.211,01. Mas, por que a remuneração deve ser tão alta? Primeiro, será que a remuneração do Auditor é que é alta, ou é a remuneração dos outros é que é baixa? Qual seria o justo? Sempre me pergunto se não seria justo viver em um país onde um professor de ensino básico ganhasse tão bem quanto um Auditor-Fiscal. Será que existe experiência assim no mundo, hoje?

Segundo, você afirmou que os contribuintes pagam para um recém-formado, sem experiência. Sim, quando eu tomei posse, eu não tinha experiência na área, simplesmente porque não existe o cargo de Auditor-Fiscal na iniciativa privada! É um cargo conhecido como típico de Estado, porque exerce prerrogativas que somente o Estado pode executar. Não é possível, por exemplo, que um Juiz inicie sua carreira na iniciativa privada. Já pensou uma empresa contratando Juízes, como seria o processo seletivo e a dinâmica de grupo?

Aliás, este é apenas um dos motivos que justifica o alto salário pago. Vou te elencar outros. Você sabia que a operação Lava-Jato começou por causa de um trabalho de fiscalização da Receita Federal? É muito comum a sonegação de tributos e a corrupção “andarem de mãos dadas”. O núcleo extinto da Lava-Jato em Curitiba era composto por uma equipe especial de Auditores-Fiscais da Receita Federal, e até maio deste ano as autuações no âmbito da operação já totalizaram R$ 11,47 bilhões. Isso sem falar das operações Ararath e Zelotes, dentre outras que a Receita Federal participa.

Ainda temos o trabalho “normal” do dia-a-dia, que por exemplo, no ano de 2016 totalizou R$ 121,66 bilhões em lançamentos, ou seja, trabalho de quem sabe um “recém-formado” que, na sua visão, ganha inacreditáveis R$ 19 mil por mês. Ocorre que este “recém-formado” teve que estudar muito para lograr êxito no concurso. Estudou matérias complexas das mais diversas áreas, desde da jurídica e contábil, ao comércio internacional, que não são estudados à toa. Servem de subsídio para a lavratura dos autos e cobrança dos valores, muitas vezes, da ordem de milhões de reais. Por isso que o seu trabalho deve ser de extrema qualidade, posto que as cobranças são, amiúde, contestadas judicialmente.

São esses milhões e bilhões de reais de impostos que sustentam a máquina pública, que fazem o Estado brasileiro funcionar, as universidades e hospitais públicos atenderem a população, que pagam o salário de tantos servidores públicos concursados, e não aspones.

Sei que esse texto pode parecer demagogia, ou mesmo um auto elogio, mas que seja, não me importo. Prefiro correr esse risco do que ver que uma jornalista formada por uma universidade pública (sustentada com impostos que vieram em grande parte do trabalho de Auditores-Fiscais) de renome como a USP, em um dos maiores veículos de comunicação do país, publicar uma coluna com tamanho engodo, sem ter a resposta e o devido alerta da gravidade de seu ato. É isso que é jornalismo? É isso que o país precisa desse momento? Você realmente acredita como “grave distorção da economia” o fato de um Auditor-Fiscal ganhar tão bem?

Você disse que o jovem servidor público não tem qualquer estímulo a fazer um bom trabalho. O meu testemunho é (e garanto a você que existem outros colegas iguais) que eu tenho o meu estímulo pessoal, pois considero a ética, e sei que sou privilegiado em fazer parte de um serviço público que remunera bem os seus agentes, mas lhe asseguro que de modo algum faço parte de uma casta ociosa que suga recursos públicos como os sonegadores, os corruptos e tantos outros beneficiários que se aproveitam dos cargos e dos seus privilégios para se locupletarem do dinheiro público. E não vou me sujeitar a baixar a cabeça quando quiserem colocar a culpa pela irresponsabilidade da má administração orçamentária nas minhas costas. O lado bom de estudar para a Receita Federal é que se estuda Orçamento Público e matérias afins, e sabemos como as coisas funcionam.

Interessante que tenha dito que no mercado privado, um salário como o meu só é alcançado por apenas 1% da população depois de uma vida de trabalho. De fato, a maioria da população brasileira assalariada não alcança salários tão altos. Mas você omite que as pessoas que mais ganham neste país muitas vezes nem sequer ganham salário, não é? São acionistas e recebem lucros e dividendos isentos de Imposto de Renda, não é? E estes acionistas muitas vezes, ganham por ano muito mais que os servidores públicos privilegiados, não é mesmo? E que outros não assalariados vivem “de renda”, não é mesmo?

Mas voltando aos cargos públicos, concordo que há privilégios que devam ser combatidos, mas com certeza não são os servidores do Poder Executivo Federal. Basta pesquisar direito. As regalias estão no Poder Legislativo e no Poder Judiciário.

Agora falando como cidadão, acredito que a população precisa de informação e conhecimento, de um jornalismo honesto, ético, sem vieses, sem chapa branca. Existe sim uma grave distorção para a economia brasileira, e que deixa os “altos salários” dos servidores insignificantes. O governo, e não somente ele, mas pessoas ligadas ao mercado financeiro (creio que do governo também, já que alguns ocupam cargos no governo) atuam para desviar o foco dos problemas orçamentários, ou melhor, da totalidade do orçamento. Como assim? O orçamento, fazendo uma comparação com o nosso dia-a-dia como gosta de fazer o nosso presidente, é como as contas lá em casa. Tem várias despesas para pagar. Mas tem algumas que o governo deliberadamente quase nunca fala a respeito, nem a mídia, nem o professor Gustavo Franco que compartilhou a sua coluna.

Praticamente METADE do orçamento é comprometido com os juros da dívida. Ao passo que os gastos com a previdência são da ordem de 20%. Eu gostaria, se possível, que você me explicasse o que são os juros da dívida. Mas me explicasse de forma bem explicada mesmo. Não da mesma forma que sua coluna tentou “explicar” sobre os gastos com os “privilégios” dos servidores do Poder Executivo. Sugiro que leia o site auditoria cidadã da dívida. É bem informativo. Por que razão a taxa de juros no Brasil é uma das mais altas do mundo? E por que o COPOM decide deliberadamente mantê-la assim por tanto tempo?

Por fim, espero estar totalmente equivocado em minha leitura sobre sua coluna, ou dos possíveis motivos que levaram a sua elaboração. Mas deve haver um motivo para essa guerra, por vezes velada, por vezes declarada à Receita Federal e aos Auditores-Fiscais. Será que uma Receita Federal forte interessa aos nossos nobres deputados, senadores, ou mesmo ao governo Temer? Será que interessa a você como jornalista ou como cidadã?

Enquanto fazemos nosso “jornalismo”, sonegadores sonegam, corruptos desviam verbas públicas, e muito do tributo que deveria ser revertido para a população esvanece. E o Brasil, com toda sua riqueza e capacidade de ser grande, continua sendo um país de maioria pobre, e de um minoria rica e privilegiada. Eu sou privilegiado, meu salário atualmente é de R$ 22.805,87. E você? É privilegiada?

São Paulo, 19 de agosto de 2017.

Eduardo Kimura
Jornalista e Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil

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