Cardápio indigesto
Em jantar com aliados, Temer apresenta a nova proposta do governo
Aprovado por míseros 3% dos brasileiros e com a maior rejeição desde o fim da ditadura, segundo o Ibope, Michel Temer confia na proteção dos senhores que conduz à mesa de jantar. Às vésperas de importantes votações, como aquela que congelou os gastos públicos por 20 anos ou as que o livraram das denúncias da Procuradoria-Geral da República pelos crimes de corrupção, organização criminosa e obstrução da Justiça, o peemedebista costuma reunir parlamentares da base em banquetes palacianos. Na noite da quarta-feira 22, voltou a abrir as portas do Palácio da Alvorada, desta vez para convencer os aliados a assumir o ônus de aprovar a reforma da Previdência, rejeitada por 85% da população, como atesta recente pesquisa CUT/Vox Populi. Para o anfitrião, o salão esvaziado não poderia ser pior presságio. O jantar deveria reunir 300 deputados, mas apenas a metade compareceu. Sorte dos trabalhadores, cujos direitos figuravam no cardápio do convescote.
Apresentada pelo deputado Arthur Maia, do PPS, relator da reforma da Previdência na Câmara, a nova proposta traz regras mais rígidas para o funcionalismo na comparação com os trabalhadores da iniciativa privada. O tempo de contribuição mínimo dos servidores foi mantido em 25 anos, enquanto a dos empregados do setor privado ficou em 15 anos, o mesmo prazo exigido hoje. “Quem é servidor público tem estabilidade de emprego”, justificou o parlamentar. Apesar da distinção, todos terão de acumular 40 anos de contribuições previdenciárias para receber o valor completo do benefício. O texto mantém ainda a idade mínima de aposentadoria em 65 anos, para os homens, e 62 anos, para as mulheres. A aposentadoria rural e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos e deficientes de baixa renda, não sofrerão mudanças.
Aversão mais enxuta da reforma trará uma economia de 480 bilhões de reais em dez anos, estima o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. “Nossos cálculos apontam que o novo texto mantém uma economia de cerca de 60% do valor original, que era de pouco menos de 800 bilhões”, afirmou, pouco antes de lançar uma ameaçadora profecia. “Caso a reforma não seja aprovada, em dez anos 80% do Orçamento da União será ocupado apenas com o pagamento da Previdência. E esse porcentual vai seguir subindo nos anos seguintes até que não haverá mais recursos para segurança, educação, saúde…”
Diante da inconsistência dos dados apresentados pelo Executivo, a desenhar “um futuro aterrorizante e totalmente inverossímil”, como afirma o relatório final do senador Hélio José (Pros) na CPI da Previdência, aprovado por unanimidade, é difícil confiar na catastrófica previsão. Ainda mais após o empenho do governo Temer em sabotar a arrecadação previdenciária com o desmonte da Consolidação das Leis do Trabalho. “Do ponto de vista das finanças públicas, Trabalho e Previdência são reformas gêmeas: a primeira derruba as receitas, o que torna imperativa a redução dos gastos pela interdição do direito à proteção na velhice”, resume o economista Eduardo Fagnani, da Unicamp. A terceirização irrestrita da mão de obra, a ampliação do trabalho temporário e a criação da modalidade intermitente, na qual os empregados são remunerados apenas pelas horas trabalhadas, reduzem a massa salarial sobre a qual incidem as receitas previdenciárias. O estudo “Reforma Trabalhista e Financiamento da Previdência”, realizado por pesquisadores do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit), ligado à Unicamp, estima que, para cada trabalhador que deixa de ser assalariado para virar “empresa”, o sistema público perde 3.727 reais ao ano. Dessa forma, calcula-se que a pejotização de 10% dos trabalhadores celetistas resultaria em 15 bilhões de reais em perdas. No fim do ano, o trabalho intermitente deve estrear com força no comércio varejista e no setor de serviços. Caso o trabalhador não consiga auferir, ao fim do mês, uma remuneração igual ou superior ao salário mínimo, caberá a ele complementar a contribuição previdenciária do próprio bolso, caso contrário não terá o período contabilizado para o cálculo da aposentadoria. “Com a legalização desses contratos precários, será cada vez mais difícil o trabalhador acumular os anos necessários de contribuição previdenciária” alerta Fagnani. A exigência de 40 anos de contribuição para a concessão do benefício integral tende ainda a empurrar os assalariados de maior renda para a previdência privada. “A reforma trabalhista abriu brechas para que eles se convertam em microempreendedores, pagando menos impostos. Por que continuariam contribuindo para o INSS, se não têm a perspectiva de receber o benefício integral antes de quatro décadas?”
O temor da perda de direitos tem provocado uma corrida às aposentadorias. Em 2016, foram concedidos mais de 432 mil benefícios por tempo de serviço, quase 35% a mais do que os 321 mil de 2015. “Essa proporção não encontra, nem de longe, as variações ocorridas desde 2011. Trata-se de um contingente adicional de 100 mil trabalhadores que deixaram de contribuir para o INSS e passaram a receber aposentadorias”, diz Floriano Martins de Sá Neto, presidente da Anfip, a associação nacional dos auditores fiscais. “Esse cenário, provocado pelo próprio governo, contribui para ampliar o alardeado déficit do setor.”
Para justificar a elevação da idade mínima para a aposentadoria e do maior período de contribuição para o benefício integral, a equipe de Temer apresenta catastróficas e suspeitas projeções de déficit no setor, lastreadas no processo de envelhecimento da população. Quase sempre se evocam os modelos de países desenvolvidos da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), mas se desconsideram as condições socioeconômicas radicalmente distintas. Ao nascer, o brasileiro tem uma expectativa de vida de 75 anos, muito abaixo da média de 81,2 anos na OCDE. Para minimizar tal discrepância, o governo costuma alegar que grande contingente de brasileiros não chega à velhice em razão da mortalidade infantil e das jovens vidas perdidas para a violência.
De fato, quando se considera a esperança de vida de quem chegou aos 65 anos, a disparidade é menor. Mesmo assim, o brasileiro tem alguns anos a menos na comparação com os europeus e norte-americanos. Além disso, a média nacional não leva em conta a forte desigualdade socioterritorial. Em um terço dos bairros de São Paulo, a expectativa de vida é inferior a 65 anos. Enquanto o morador do bairro de Pinheiros vive, em média, 79 anos, o da periférica Cidade Adhemar não chega aos 54 anos. E ambos vivem na mesma cidade.
Além disso, é um equívoco dizer que todos os países da OCDE possuem 65 anos de idade mínima para se aposentar. “Na maioria dos casos, trabalha-se com outro conceito, o de idade de referência”, explica a economista Denise Gentil, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na Itália, a idade de referência para a aposentadoria dos homens é de 66 anos e, para as mulheres, é de 62. Isso não significa que os italianos não possam receber benefícios previdenciários antes disso, desde que tenham contribuído por 15 anos e estejam dispostos a embolsar um valor menor. Com idade de referência superiora 65 anos, Portugal, Suécia e Estados Unidos permitem a aposentadoria a partir dos 57, 61 e 62 anos, respectivamente.
“Na realidade, o governo sabota a Previdência pública e induz à privatização do setor. As exigências impostas aos trabalhadores são tão altas e as perspectivas de obter uma boa aposentadoria foram reduzidas a tal ponto que estimularão a busca pela previdência privada”, afirma Gentil. O desempenho do setor parece confirmar a tese da economista. A despeito da crise, a captação líquida dos planos abertos de previdência privada no Brasil somou 13,3 bilhões de reais no terceiro trimestre, alta de 46,3% em comparação ao mesmo período do ano passado, segundo a FenaPrevi, que representa o setor. No acumulado até setembro, a diferença entre depósitos e resgates atingiu 38,9 bilhões, crescimento de 18,4% A aposta é arriscada. Primeira nação do mundo a privatizar a sua previdência, o Chile hoje se vê forçado a rever o modelo. Em 1981, o ditador Augusto Pinochet instituiu o sistema de capitalização individual, no qual cada trabalhador é responsável por fazer a própria poupança, administrada por fundos privados, que aplicam o dinheiro no mercado financeiro. Por causa do baixo valor recebido pelos aposentados, o país agora vive uma situação insustentável, como reconheceu a presidente Michelle Bachelet, empenhada na reestruturação do setor. De acordo com a Fundação Sol, dedicada a estudos sobre o mundo do trabalho, 91% dos aposentados chilenos recebem valores inferiores a 150 mil pesos (cerca de 768 reais), muito abaixo do salário mínimo vigente no país, de 270 mil pesos (1.383 reais).
Em 1997, incentivado pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial, o México adotou um modelo semelhante, e hoje também se encontra em situação de penúria. Por causa da elevada informalidade do mercado de trabalho, a atingir 57,2% da população economicamente ativa, poucos contribuem para o sistema. Além disso, 75% dos contribuintes ganham menos de cinco salários mínimos, o equivalente a 12 mil pesos por mês (cerca de 2.078 reais). Se não fizerem aportes voluntários, superiores ao porcentual exigido pela legislação, esses trabalhadores dificilmente terão direito a aposentadorias superiores a 2,3 mil pesos (398 reais), estima a Lockton México, empresa especializada em administração de seguros. Não bastasse, sete em cada dez idosos estão desassistidos.
Os indicadores sociais do México não deixam dúvidas sobre o legado desta e de outras reformas. De 2008 a 2014, as taxas de pobreza e indigência não pararam de crescer, e chegaram a atingir 39,1% e 12,2% da população mexicana, respectivamente, segundo as medições da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), baseadas no poder de compra de uma cesta de itens necessários à sobrevivência.
As dificuldades impostas ao trabalhador para se aposentar levarão o sistema público à ruína.
Fonte: ANFIP