A Receita Federal no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro
Caso não haja mudanças na forma de atuação do órgão, os resultados da Lava Jato confirmarão que não passam de exceção.
Entre os auditores fiscais da Receita Federal, há a clara percepção de que a sonegação e a corrupção são crimes de mesma natureza, que deveriam receber a devida atenção e tratamento por parte do Estado. Aliás, as estimativas dão conta de que os crimes financeiros sangram os cofres públicos em R$ 200 bilhões por ano, enquanto a sonegação priva os cofres públicos de um montante superior a R$ 500 bilhões anuais, um sorvedouro ainda maior de recursos públicos.
Não é preciso ser um economista ou matemático para entender onde está a fonte de recursos para reequilibrar as finanças do País e como fazê-lo. A Receita Federal dispõe de gente capacitada e aprimorou, na Lava Jato, know-how, tecnologia e conhecimento necessários para ajudar o Estado no combate a essas irmãs siamesas que contribuem em muito para o desajuste fiscal.
É de reconhecimento público e dos órgãos envolvidos que grande parte do sucesso da operação deve-se ao trabalho dos auditores fiscais em várias frentes, como a área de inteligência, a seleção dos contribuintes e a fiscalização.
O volumoso universo de informações levou as autoridades tributárias a desenvolverem sistemas específicos para o tratamento de dados, como o Sislava – um banco de dados para pesquisa que cruza informações da investigação da Lava Jato -, além do uso de mecanismos que permitem identificar padrões de comportamento nos contribuintes investigados. É o caso das chamadas noteiras – empresas de fachada criadas apenas para emissão de notas fiscais, sem efetiva prestação de serviço.
A operação Lava Jato é, sem dúvida, um marco no combate a esse mal que afunda o País num quadro de desalento e desassistência pública. Nunca antes uma investigação apurou crimes tão graves e amplos, com a prisão e condenação de altos representantes da classe política e do empresariado.
Um volume recorde de recursos desviados para o exterior foram recuperados. Tudo isso em razão do trabalho coordenado e exitoso da força-tarefa da Lava Jato, formada pelo Ministério Público Federal, Polícia Federal e Receita Federal.
Não obstante a importância da Receita Federal para o êxito das investigações da Lava Jato, não se pode ignorar que, ao longo de muitos anos, valores superlativos foram transacionados por grandes empresas privadas e estatais e por políticos de grande envergadura no País. Auxiliadas por empresas de fachada e operações fictícias de comércio exterior, todas foram movimentações fraudulentas que passaram despercebidas aos radares da Receita.
Antes de completar o primeiro aniversário, procuradores do MPF perceberam que o êxito das investigações decorria de um encadeamento de fatos totalmente improváveis. Algo que, sem mudanças estruturais, faria da Lava Jato um ponto fora da curva em um país histórica e reiteradamente atingido por escândalos de corrupção.
Identificaram diversos pontos da legislação que conspiravam em favor da corrupção, apontaram soluções e, dessa visão, nasceu o projeto das dez medidas contra a corrupção. O Ministério Público Federal abraçou institucionalmente essa iniciativa, como depositário das assinaturas de mais de dois milhões de brasileiros.
Se quisermos que a Lava Jato seja, de fato, um marco de mudança histórica no combate a esses crimes no Brasil, a Receita Federal precisa compreender que possui o poder e o dever de cerrar fileiras contra os males da corrupção, sobretudo pela sua posição privilegiada no tocante às informações econômicas dos contribuintes.
Caso não haja mudanças de fundo na forma de atuação do órgão, os resultados da Lava Jato confirmarão que não passam de exceção. E novos casos de corrupção e lavagem de dinheiro voltarão a passar embaixo dos nossos narizes. Algumas medidas sequer dependem de alteração legislativa, mas exclusivamente da vontade efetiva de se combater esses ilícitos.
Uma das propostas para fortalecer o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro foi apresentada pela Unafisco, Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal, em uma nota técnica. Ela alerta para o tratamento equivocado dado pela Receita Federal às chamadas pessoas politicamente expostas (PPE).
O Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas contra a corrupção, de 2003, conhecida como Tratado de Mérida. A convenção foi internalizada no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto n°5.687. O tratado vincula o País a recomendações internacionais. Dentre elas, o dever de exercer maior vigilância sobre detentores de cargos públicos de relevo, em razão do entendimento de que essas pessoas estão potencialmente mais expostas ao cometimento de crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro.
Esse grupo é denominado de pessoas politicamente expostas (PPEs). No Brasil, a lista inclui deputados, senadores, ministros, governadores, diretores e presidentes de estatais, altos cargos do Judiciário, do Ministério Público e do Tribunal de Contas, entre outros. A Receita Federal é um dos órgãos da chamada ENCCLA – Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, sob a coordenação do Ministério da Justiça.
Entretanto, a Receita Federal não vem exercendo nenhuma vigilância diferenciada em relação às PPEs. Em resposta a ofício enviado pela Unafisco, o subsecretário de fiscalização respondeu que a condição de PPE não é considerada como parâmetro para a seleção de contribuintes; que essa situação é considerada neutra, em razão do princípio da impessoalidade.
Na visão da Unafisco, não apenas o tratado internacional, mas também a experiência da Lava Jato tornam imperativo que haja um rigor diferenciado no tocante às PPEs e às pessoas jurídicas a elas vinculadas. Um número expressivo de PPE compõe o quadro de investigados e condenados: já são 113 no STF e STJ, além de um quantitativo equivalente nas demais instâncias. Isso falando apenas de Lava Jato, sem considerar outras operações que envolvem casos de corrupção e lavagem de dinheiro.
Além de não exercer maior vigilância sobre as PPEs, existe na Receita Federal um sistema denominado Alerta, que avisa por e-mail a cúpula do órgão se e quando os auditores fiscais acessam dados das PPEs nos sistemas da Receita. Todos os acessos aos sistemas feitos por qualquer servidor da ficam registrados: quais sistemas e telas, se houve impressão, print screen, data, horário e de que máquina e local foram feitos os acessos. Absolutamente tudo é registrado.
É fundamental que haja rastreabilidade dos acessos, para que aquele servidor que porventura fizer uso indevido da informação seja rigorosamente punido. Diante disso, não é justificável nem razoável que se mantenha esse monitoramento sistemático e prévio do sistema Alerta, especificamente em relação a esse grupo de contribuintes: as pessoas politicamente expostas.
O monitoramento que deveria ser empreendido sobre as PPEs acaba, em uma subversão lógica, dando-se sobre os auditores fiscais que venham a acessar dados de alguma PPE nos sistemas da Receita.
A frustrante realidade é que, até o momento, não há sinais de que a administração da Receita Federal tenha feito qualquer reflexão ou autocrítica com relação às questões apresentadas pela Unafisco. Assim como não se vislumbra apoio institucional a medidas estruturais que alterem efetivamente o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro no País.
Fonte: huffpostbrasil.com