Programas de parcelamento se destinam a menos de 1% dos contribuintes, diz PGFN
A concessão de benefícios fiscais a quem tem dívida com a União tem sido estratégia contínua do governo federal desde 2000. A ideia é que, dando descontos ou concedendo anistias, o governo consegue garantir pelo menos a entrada de algum dinheiro nos cofres públicos, ainda que ao custo de descontos na multa ou nos juros. E é uma política que já atravessa gestões de quatro presidentes diferentes de três partidos pouco semelhantes entre si.
Mas são medidas de público-alvo bastante restrito adotadas em detrimento da enorme maioria dos contribuintes. É o que conclui nota técnica da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional concluída no dia 19 de julho e publicada no dia 2 de agosto. O estudo partiu dos dados da Dívida Ativa da União, onde estão inscritos todos os débitos tributários e do FGTS, e que é controlada pela PGFN.
De acordo com a pesquisa, menos de 15% das empresas ativas no Brasil têm dívidas fiscais com a União. E 0,5% delas responde por 62% da dívida total. No caso do FGTS, só 0,6% das empresas ativas estão inscritas na Dívida Ativa, e 0,6% delas responde por 23% do débito total.
Em relação às pessoas físicas, a concentração é ainda maior. Menos de 7% de todas as pessoas que registram renda tributável no Brasil têm dívidas fiscais com o Fisco federal. E 0,1% delas responde por 34% da dívida total. Com o FGTS, apenas 0,006% das pessoas físicas com renda tributável está inscrita na Dívida Ativa da União.
“Os gestores públicos devem observar que benefícios fiscais como parcelamentos, remissões e anistias favorecem uma pequena parcela da sociedade”, conclui a PGFN. Mais grave ainda, segundo o órgão, é que essas dívidas estão concentradas nos “grandes devedores”, que são pessoas ou empresas cujos débitos ultrapassam R$ 15 milhões — no caso das empresas, 0,4% delas são grandes devedoras, que respondem por 62% da dívida tributária total, conforme os dados da PGFN.
Ainda assim, somente o último programa de parcelamento, criado pela Medida Provisória 783/2017 e apelidado de Pert, já resultará numa renúncia fiscal de R$ 35 bilhões até 2020, de acordo com estudo da Receita Federal. Caso seja aprovado o relatório aprovado pela Comissão Mista do Congresso para análise da MP, a renúncia estimada sobe para R$ 84 bilhões, segundo o mesmo levantamento.
O estudo da Receita sobre o Pert também reclama das mudanças na taxa de correção dos depósitos judiciais, que podem ser utilizados para descontar do total da dívida. Hoje, os depósitos para esse fim são corrigidos pela Taxa de Juros de Longo Prazo, a TJLP, cujas alíquotas são menores que as da Selic, praticadas pelo mercado. O Congresso mudou para que elas sejam corrigidas justamente pela Selic. A Receita diz que isso acarretará em gastos de R$ 236,3 bilhões. Pelas regras da MP, os gastos são de R$ 153,2 bilhões.
Mas, para o tributarista Robson Maia Lins, professor da PUC-SP e do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), o motivo da reclamação é o cofre vazio. “Em situações de estabilidade, ninguém reclama do uso dos depósitos. Agora que estamos em crise, passaram a reclamar. O resumo disso é: ‘Quero dinheiro novo, porque dinheiro velho não me interessa, eu já tenho’”, afirma.
Clientes diferenciados
Os dados da PGFN são corroborados por uma série de trabalhos técnicos compilados pela Associação Nacional de Auditores Fiscais da Receita (Unafisco) em nota técnica publicada em fevereiro deste ano. Segundo o levantamento, mais de 48 mil pessoas jurídicas aderiram a três ou mais programas de refinanciamento fiscal entre 2000 e 2016. Elas inscreveram dívidas de R$ 160 bilhões.
E de acordo com a Unafisco, 68% dessas pessoas jurídicas são o que a Receita Federal chama de “contribuintes diferenciados”, empresas que faturam acima de R$ 150 milhões por ano. Elas foram responsáveis por R$ 109,9 bilhões do total arrecadado por essas companhias nos Refis.
As grandes empresas que aderiram a cinco programas de parcelamento responderam por 80% da dívida registrada nesses benefícios, ou R$ 6,6 bilhões dos R$ 8,3 bilhões arrecadados. O levantamento da Unafisco tem como fonte informações da própria Receita Federal.
Consequências
Esses dados, para a Procuradoria da Fazenda, são ruins porque têm efeitos pedagógicos. Segundo a nota técnica, “a concessão reiterada de benefícios fiscais extremamente vantajosos” pode estimular as 85,2% de empresas e 93,8% de pessoas boas pagadoras a deixar de cumprir com suas obrigações tributárias, “desequilibrando o sistema arrecadatório nacional”.
Quanto às pessoas jurídicas, a PGFN também considera a influência dos benefícios no mercado. O fato de o governo conceder descontos às devedoras acaba prejudicando quem paga seus impostos, o que pode desequilibrar a concorrência. Empresas que estão em dia com suas obrigações “possuem um custo operacional maior em relação às que deixam de quitar suas obrigações junto à União”, diz a nota técnica.
Efeitos futuros
Não é um receio infundado. Estudo publicado em 2012 pelo auditor fiscal Nelson Leitão Paes, professor da Universidade Federal de Pernambuco, afirma que, conforme o governo foi editando programas de parcelamento, tanto a adesão quanto o valor médio das parcelas aumentaram.
Segundo o texto, no primeiro programa, de 2000, a arrecadação média mensal foi de R$ 176 milhões. No programa de 2009, chamado de Refis da Crise, a cifra subiu para R$ 948 milhões. “Aqui já se apresenta um primeiro indicativo de que a regularidade na concessão dos parcelamentos tem comprometido a disposição dos contribuintes de pagar seus tributos pontualmente”, afirma a pesquisa, publicada na edição de maio a agosto da revista EconomiA, editada pela Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia (Anpec).
E até dentro do mesmo programa a queda na arrecadação foi sensível. Por exemplo, o primeiro Refis começou com 120 mil inscritos pagando em média R$ 176 milhões por mês. Em 2004, eram 27,3 mil inscritos pagando R$ 92 milhões por mês. A Receita não divulgou quantos se inscreveram no Paex, de 2006. Mas informou que, no primeiro ano, a parcela média mensal foi de R$ 948 milhões. Em 2010, era de R$ 30 milhões — queda de mais de 90% na arrecadação média por mês.
O estudo analisou os dados publicados pela Receita sobre todos os programas de refinanciamento, apelidados de Refis, entre 2004 e 2010. E concluiu que o resultado foi a redução da “disposição de pagar tributos no Brasil”. De acordo com o texto, antes dos Refis, dois terços dos contribuintes tinham essa disposição. Com a evolução dos programas de parcelamento, a vontade caiu para cerca de 60%.
Armadilhas da arrecadação
De acordo com o artigo de Nelson Paes, os programas lidam com o mito de que eles ajudam a arrecadar. Mas o mito, na verdade, é uma “armadilha”, diz ele. Da análise dos dados publicados pela Receita sobre os Refis editados até 2010, o autor constatou que eles afetam a “boa cultura de pagamento de tributos”.
É que os programas costumam exigir, como condição para se inscrever, o pagamento à vista de uma fração da dívida total. Isso faz com que grande quantidade de dinheiro entre nos cofres públicos de uma vez, mas o efeito futuro, na verdade, é de perda de arrecadação.
O impacto foi medido pelo auditor fiscal Frederico Faber em artigo publicado na edição de 2016 da Revista da Receita Federal. Usando de métodos econométricos, ele concluiu que cada programa de parcelamento resulta em queda de R$ 18,6 bilhões por ano na arrecadação.
Já o pagamento espontâneo de impostos também cai com os Refis. De acordo com o estudo de Faber, o total arrecadado com pessoas jurídicas cai 5,8% em média nos dois anos anteriores à edição de um programa de refinanciamento. Para o autor, isso mostra que as empresas contam com os descontos em suas dívidas fiscais para planejar suas atividades, o que desequilibra a concorrência e pune quem está em dia com seus pagamentos.
Já a nota da Unafisco mostra, por meio dos dados da evolução da Dívida Ativa da União, que toda vez que o Refis é editado a arrecadação sobe. Logo depois, no entanto, volta a cair. Esse efeito foi mais visível entre 1999 e 2002.
Em 1999, a arrecadação da dívida caiu R$ 158 milhões. No ano seguinte, com a edição do primeiro Refis, subiu para R$ 1,4 bilhões. Ao mesmo tempo, a DAU subiu R$ 393 milhões.
Um ano depois, tudo já tinha voltado ao normal. Em 2001, a Dívida Ativa subiu R$ 25 bilhões e a arrecadação caiu R$ 100 milhões em relação ao ano anterior. Em 2002, a arrecadação da dívida caiu para R$ 797 milhões.
“A concessão de parcelamentos especiais com altos descontos de juros, multas e encargos legais configura benefícios que acarretam renúncia de receita, e instituídos sem os necessários estudos sobre os impactos orçamentário-financeiros”, conclui a Unafisco. “Com a implantação de frequentes parcelamentos especiais, o bom cidadão contribuinte, pequeno, médio ou grande, em qualquer setor, acaba sendo desestimulado a recolher seus tributos espontaneamente.”
Fonte: ConJur