VISÃO AMPLIADA: TCU pode expedir medida cautelar para prevenir lesão futura ao erário

O Tribunal de Contas da União e os Tribunais de Contas estaduais têm legitimidade para expedir medidas cautelares para prevenir lesão futura ao erário. O entendimento, por maioria de votos, é do Supremo Tribunal Federal. Ficou vencido o ministro Carlos Ayres Brito em julgamento em novembro.

A Corte entendeu que, se o TCU e TCEs estão incumbidos de zelar pela fiscalização e interesse público, podem sim prevenir lesões futuras. Foi a primeira vez que o TCU garantiu o direito de adotar medida cautelar para preservar resultado final de seu julgamento. Assim, o entendimento do artigo 71 da Constituição Federal foi ampliado pelos ministros.

Para o ministro Celso de Mello, “se as Cortes de Contas têm legitimidade para determinar que os órgãos ou entidades da Administração interessada adotem as medidas necessárias ao exato cumprimento da lei, com maior propriedade possuem legitimidade para a expedição de medidas cautelares, como a ora impugnada, a fim de prevenir a ocorrência de lesão ao erário ou a direito alheio, bem como garantir a efetividade de suas decisões”.

Segundo ele, “o exercício do poder de cautela, pelo Tribunal de Contas, destina-se a garantir a própria utilidade da deliberação final a ser por ele tomada, em ordem a impedir que o eventual retardamento na apreciação do mérito da questão suscitada culmine por afetar, comprometer e frustrar o resultado definitivo do exame da controvérsia”.

Leia o voto do ministro Celso de Mello:

19/11/2003

TRIBUNAL PLENO

MANDADO DE SEGURANÇA 24.510-7 DISTRITO FEDERAL

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Entendo, Senhor Presidente, que o poder cautelar também compõe a esfera de atribuições institucionais do Tribunal de Contas, pois se acha instrumentalmente vocacionado a tornar efetivo o exercício, por essa Alta Corte, das múltiplas e relevantescompetências que lhe foram diretamente outorgadas pelo próprio texto da Constituição da República.

Isso significa que a atribuição de poderes explícitos, ao Tribunal de Contas, tais como enunciados no art. 71 da Lei Fundamental da República, supõeque se lhe reconheça, ainda que por implicitude, a titularidade de meios destinados a viabilizar a adoção de medidas cautelares vocacionadas a conferir real efetividade às suas deliberações finais, permitindo, assim, que se neutralizem situações de lesividade, atual ou iminente, ao erário público.

Impende considerar, no ponto, em ordem a legitimar esse entendimento, a formulação que se fez em torno dos poderes implícitos, cuja doutrina, construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no célebre caso McCULLOCH v. MARYLAND (1819), enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimentoimplícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos fins que lhe foram atribuídos.

Cabe assinalar, ante a sua extrema pertinência, o autorizado magistério de MARCELLO CAETANO (“Direito Constitucional“, vol. II/12-13, item n. 9, 1978, Forense), cuja observação, no tema, referindo-se aos processos de hermenêutica constitucional, assinala que, “Em relação aos poderes dos órgãos ou das pessoas físicas ou jurídicas, admite-se, por exemplo, a interpretação extensiva, sobretudo pela determinação dos poderes que estejam implícitos noutros expressamente atribuídos” (grifei).

Esta Suprema Corte, ao exercer o seu poder de indagação constitucional – consoante adverte CASTRO NUNES (“Teoria e Prática do Poder Judiciário“, p. 641/650, 1943, Forense) – deve ter presente, sempre, essa técnica lógico-racional, fundada na teoria jurídica dos poderes implícitos, para, através dela, conferir eficácia real ao conteúdo e ao exercício de dada competência constitucional, como a de que ora se cuida, consideradas as atribuições do Tribunal de Contas da União, tais como expressamente relacionadas no art. 71 da Constituição da República.

É por isso que entendo revestir-se de integral legitimidade constitucional a atribuição de índole cautelar, que, reconhecida com apoio na teoria dos poderes implícitos, permite, ao Tribunal de Contas da União, adotar as medidas necessárias ao fiel cumprimento de suas funções institucionais e ao pleno exercício das competências que lhe foram outorgadas, diretamente, pela própria Constituição da República.

Não fora assim, e desde que adotada, na espécie, uma indevida perspectiva reducionista, esvaziar-se-iam, por completo, as atribuições constitucionais expressamente conferidas ao Tribunal de Contas da União.

Daí a corretíssima advertência do eminente e saudoso Ministro OSWALDO TRIGUEIRO (“Os Poderes do Presidente da República”, “in” RDA, vol. 29/22):

“Nada mais lógico, portanto, do que recorrermos eventualmente ao expedientedos poderes implícitos, para neles assentar algum poder derivado de que (…) tivesse de utilizar-se para integral desempenho de seu papel constitucional.”(grifei)

Não constitui demasia relembrar, neste ponto, Senhor Presidente, a lição definitiva de RUI BARBOSA (“Comentários à Constituição Federal Brasileira“, vol. I/203-225, coligidos e ordenados por Homero Pires, 1932, Saraiva), cuja precisa abordagem da teoria dos poderes implícitos – após referir as opiniões de JOHN MARSHALL, de WILLOUGBY, de JAMES MADISON e de JOÃO BARBALHO – assinala:

“Não são as Constituições enumerações das faculdades atribuídas aos poderes dos Estados. Traçam elas uma figura geral do regime, dos seus caracteres capitais, enumeram as atribuições principais de cada ramo da soberania nacional e deixam à interpretação e ao critério de cada um dos poderes constituídos, no uso dessas funções, a escolha dos meios e instrumentos com que os tem de exercer a cada atribuição conferida.

A cada um dos órgãos da soberania nacional do nosso regime, corresponde, implicitamente, mas inegavelmente, o direito ao uso dos meios necessários, dos instrumentos convenientes ao bom desempenho da missão que lhe é conferida.

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Nos Estados Unidos, é, desde MARSHALL, que essa verdade se afirma, não só para o nosso regime, mas para todos os regimes. Essa verdade fundada pelo bom senso é a de que – em se querendo os fins, se hão de querer, necessariamente, os meios; a de que se conferimos a uma autoridade uma função, implicitamente lhe conferimos os meios eficazes para exercer essas funções. (…).

……………………………………………

Quer dizer (princípio indiscutível) que, uma vez conferida uma atribuição, nela se consideram envolvidos todos os meios necessários para a sua execução regular. Este, o princípio; esta, a regra.

……………………………………………

Trata-se, portanto, de uma verdade que se estriba ao mesmo tempo em dois fundamentos inabaláveis, fundamento da razão geral, do senso universal, da verdade evidente em toda a parte – o princípio de que a concessão dos fins importa a concessão dos meios (…).

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A questão, portanto, é saber da legitimidade quanto ao fim que se tem em mira. Verificada a legitimidade deste fim, todos os meios que forem apropriados a ele, todos os meios que a ele forem claramente adaptáveis, todos os meios que não forem proibidos pela Constituição, implicitamente se têm concedido ao uso da autoridade a quem se conferiu o poder.” (grifei)

Assiste, pois, inteira razão ao Ministério Público Federal, cujo parecer, da lavra da ilustre Subprocuradora-Geral da República, Dra. SANDRA CUREAU, aprovado pelo eminente Chefe da Instituição, Dr. GERALDO BRINDEIRO, assim apreciou – e bem examinou – esse específico aspecto da questão:

“Fica claro, pois, que cabe à Corte de Contas o exame de editais de licitação publicados, o que se concilia com sua competência de ‘assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada a ilegalidade’ (CF, art. 71, inc. IX).

Por outro lado, se as Cortes de Contas têm legitimidade para determinar que os órgãos ou entidades da Administração interessada adotem as medidas necessárias ao exato cumprimento da lei, com maior propriedade possuem legitimidade para a expedição de medidas cautelares, como a ora impugnada,a fim de prevenir a ocorrência de lesão ao erário ou a direito alheio, bem como garantir a efetividade de suas decisões.

O art. 276 do RITCU disciplina a matéria:

‘Art. 276. O Plenário, o relator, ou, na hipótese do art. 28, inciso XVI, o Presidente, em caso de urgência, de fundado receio de grave lesão ao erário oua direito alheio ou de risco de ineficácia da decisão de mérito, poderá, de ofício ou mediante provocação, adotar medida cautelar, com ou sem a prévia oitiva da parte, determinando, entre outras providências, a suspensão do ato ou do procedimento impugnado, até que o Tribunal decida sobre o mérito da questão suscitada, nos termos do art. 45 da Lei nº 8.443, de 1992.” (grifei)

Na realidade, o exercício do poder de cautela, pelo Tribunal de Contas, destina-se a garantir a própria utilidade da deliberação final a ser por ele tomada, em ordem a impedir que o eventual retardamento na apreciação do mérito da questão suscitada culmine por afetar, comprometer e frustrar o resultado definitivo do exame da controvérsia.

Não se pode ignorar – consoante proclama autorizado magistério doutrinário (SYDNEY SANCHES, “Poder Cautelar Geral do Juiz no Processo Civil Brasileiro“, p. 30, 1978, RT; JOSÉ FREDERICO MARQUES, “Manual de Direito Processual Civil“, vol. 4/335, item n. 1.021, 7ª ed., 1987, Saraiva; CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, “A Instrumentalidade do Processo“, p. 336/371, 1987, RT; VITTORIO DENTI, “Sul Concetto di funzione cautelare”, in “Studi P. Ciapessoni“, p. 23-24, 1948; PIERO CALAMANDREI, “Introduzione allo Studio Sistematico dei Provvedimenti cautelari“, p. 20, item n. 8, Pádua, 1936, Cedam; HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, “Tutela Cautelar“, vol. 4, p. 17, 1992, Aide, v.g.) – que os provimentos de natureza cautelar acham-seinstrumentalmente vocacionados a conferir efetividade ao julgamento final resultante do processo principal, assegurando, desse modo, plena eficácia e utilidade à tutela estatal a ser prestada.

Assentada tal premissa, que confere especial ênfase ao binômio utilidade/necessidade, torna-se essencial reconhecer – especialmente em função do próprio modelo brasileiro de fiscalização financeira e orçamentária, e considerada, ainda, a doutrina dos poderes implícitos – que a tutela cautelar apresenta-se como instrumento processual necessário e compatível com o sistema de controle externo, em cuja concretização o Tribunal de Contas desempenha, como protagonista autônomo, um dos mais relevantes papéis constitucionais deferidos aos órgãos e às instituições estatais.

Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, peço vênia ao eminente Ministro CARLOS BRITTO para denegar o mandado de segurança, acompanhando, desse modo, o douto voto da ilustre Senhora Ministra-Relatora.

Fonte:  Conjur

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